Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Tantos foram os anos no mar, tantas foram as receitas inventadas, para desenjoar. Desde as grandes navegações portuguesas até hoje, contabilizam-se mais de cem maneiras de se servir o bacalhau. Agora, se você está em visita a Portugal e não gosta de nenhuma delas, hum, como é que vai ser? Porque, por este lado do mar, quem não gosta de bacalhau é “ruim da cabeça” ou não sabe o que é bom.
Briga-se no caixa dos supermercados por centavos a menos no preço do bacalhau. Mas, se o peixe tem alta no preço, o português dificilmente conforma-se com um primo: a faneca, o palaco, a maruca, a abrótea. Come, desgostoso. E um dia sem o rei dos peixes, dá saudade e fado. Mastiga-se o substituto, os olhos em sonhos com o lagareiro, com o de natas, ao Gomes de Sá, ao Zé do Pipo, ao Brás, com o espiritual, o poupado, o escorregadio. Todo dia, uma novidade.
Gosto das pataniscas — salva da heresia de não comer bacalhau. Aprendi uma ou duas receitas, levo para as festas nas casas alheias. Festa sem bacalhau, não é festa. A cozinha empesta com o cheiro forte, mas a vizinhança sorri, satisfeita: hoje a brasileira vai comer bacalhau! Para o rei dos menus, Portugal tem até um Aquário de bacalhaus — em Ílhavo, perto de Aveiro, a 70 quilômetros do Porto.
Em 120 metros cúbicos de água, você se debruça na proteção de vidro do aquário aberto e aprecia os únicos 30 bacalhaus que vão morrer de doença ou de velhos, em Portugal. Nem adianta sonhar em degustar um filhote deles — os milhares de ovos soltos pelas fêmeas são tragados pelos filtros. A espécie amada pelos portugueses é a Gadus Morhua, com sua cabeça grande, muitas barbatanas e uma risca lateral.
No Oceano Atlântico, podem viver de 20 a 25 anos — caso não encontre pelo caminho, nos cerca de 60 quilômetros que fazem todos os dias em busca de comida, um barco pesqueiro. Porque hoje os homens são predadores mais vorazes que as tradicionais focas. Depois que os portugueses descobriram o sabor do bacalhau, nunca mais pararam. De 1930 a 1976, o país viveu o tempo lendário das grandes campanhas de pesca.
Sem mais terra para conquistar, os barcos portugueses bravavam os mares frios do Canadá e a da Groelândia, as tempestades, os nevoeiros e icebergues, para pescarem bacalhau. No meio do oceano, o bacalhoeiro-mãe fundeava e dele saiam cerca de 50 dórios — pequenos barquinhos de um homem só, que tiravam na linha e no braço peixes enormes, de até 9 quilos. Muitos destes marinheiros perderam a vida na perigosa pesca do bacalhau.
No Brasil ele é raro nas mesas. Comia apenas na Semana Santa, e olhe lá — hoje o preço é proibitivo. Das águas fundas e geladas da Noruega, Islândia, Groelândia e Canadá, o prato nacional e tradicional de Portugal não pode faltar em casa, nem no restaurante: o país consome 20% de todo o bacalhau pescado no mundo. Sem os portugueses, a pesca norueguesa teria um prejuízo enorme.
Todo esse amor por bacalhau em Portugal, em menos volúpia, também em outros países da Europa, deu no que deu: o Gadus Morhua, mesmo com as temporadas de proteção, está em perigo. Desencadeou guerras, alterou regimes dietéticos e, segundo o escritor Mark Kurlansky, este peixe até mudou o mundo. Agora está em risco — um estudo da WWF (Fundo Mundial para a Natureza) indica que o bacalhau podeestar extinto em 15 anos.
Na pesca de arrasto em larga escala, desenha-se uma tragédia para o bacalhau — agravada pelo aquecimento global, que muda as temperaturas e o nível de acidificação das águas dos mares. Loucos por bacalhau no prato, mas antes de tudo loucos por mais bacalhau nas águas oceânicas: deixá-los se reproduzir e crescer em paz, consumir menos. Já foi abundante, hoje é um frágil ser preso na rede dos negócios e tradições.
Caso contrário, só no aquário. Mamãe, o que é um bacalhau? Filho, vou te levar a Ílhavo, para você ver o peixe que comiam os seus avós, nos tempos em que os peixes ainda viviam no mar.
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