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A história da bica, o cafezinho brasileiro em Portugal
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

A história da bica, o cafezinho brasileiro em Portugal

A Brasileira do Chiado: um dos icônicos cafés de Portugal. Com ele, Adriano Telles, o português que fundou a loja cem anos atrás, introduziu o aroma dos nossos cafés no paladar português e divulgou-o pelo mundo
Tipo Crônica
A Brasileira do Chiado, em Lisboa, Portugal (Foto: Reproduçaõ/Site/A Brasileira do Chiado)
Foto: Reproduçaõ/Site/A Brasileira do Chiado A Brasileira do Chiado, em Lisboa, Portugal

De visita ao Chiado, sentou-se — sou capaz de jurar — ao lado da estátua de bronze de Fernando Pessoa, para uma foto. E, no convite desta presença tão portuguesa, escolheu, como o escritor costumava fazer, uma das mesas da esplanada, de frente para a rua, em meio ao bulício dos passantes. Bebeu também um café puro, como o assíduo Pessoa fazia, no seu tempo. Quem sabe, apreciou a fachada luxuosa, ao estilo de Paris, última década do século 19, que tanto maravilhava os intelectuais portugueses.

Mas, foi só uma breve pausa. Agora o turista de passagem vai borboletear por Lisboa, já esquecido do nome do café d’A Brasileira e ignorante de sua importância cultural para Portugal. Nem sabe que um dia, muito tempo atrás, Fernando Pessoa deixou à espera ali, naquela mesma mesa, uma mulher. Nada menos que a grande escritora e poetisa da língua portuguesa, a nossa querida Cecília Meireles. Ao que parece, deixou a moça pendurada, um café atrás do outro, durante duas longas horas, porque o horóscopo do dia desaconselhava encontros.

Pessoa perdeu a oportunidade de conhecer a poetisa e de ter com ela uma boa conversa entre grandes. Justificou-se e desculpou-se, em um bilhete — e o desencontro entrou no compêndio de história dos habitués d’A Brasileira. Mas, o turista que bebeu o café, o que ele leva da A Brasileira, além de mais uma boa foto de Lisboa? Se soubesse que nestes cem anos de existência, o café mais famoso de Lisboa testemunhou coisas incríveis, teria talvez ficado e pedido um bife-à-café e depois bebido uma bica, os dois preferidos de Pessoa.

Já vão longe os anos de cadeiras partidas e arremessos de xícaras entre republicanos e integralistas, nesse hoje pacato café do centro de Lisboa. O fundador, o português Adriano Telles, voltou do Brasil rico, depois de um bom casamento com a filha de um fazendeiro produtor de café. Com a esposa doente, Telles preferiu os ares mais frios da Europa e trouxe com ele o amor pelo café. Comprou o prédio de uma antiga camisaria e montou seu negócio — novíssimo e estranho, para o paladar português, que achavam a bebida brasileira forte e amarga demais.

Adriano Telles não se intimidou. Dizia: beba isto com açúcar. Daí surgiu o termo bem português de “bica” — palavra formada pela junção das primeiras letras da frase repetida pelo dono. A quem entrasse e comprasse uma iguaria qualquer no balcão, ele servia de graça uma xícara de café. Ganhou a parada na persistência. Ampliou a rede de cafés, ficou famoso. Pelo café, pelos ilustres clientes, pelos saraus literários, pelo espaço dado às discussões políticas, pelo gosto pelas artes.

Encomendou e expôs quadros de artistas modernistas, transformando A Brasileira no primeiro “museu” de artes contemporâneas, de Lisboa. Hoje existe o Prêmio de Pintura A Brasileira do Chiado. Ao promover as artes e o café brasileiro, Telles criou um espaço de tal forma icônico, onde nem a brutalidade do Estado Novo, a ditadura Salazarista que vigorou em Portugal durante 41 anos, ousava entrar. Para prender qualquer um dos fregueses, exilado entre as mesas e as xícaras de café, a polícia de Salazar tinha de esperar durante horas, do lado de fora – até que o cliente resolvesse sair.

Estátua de Fernando Pessoa no café A Brasileira do Chiado(Foto: Reprodução/Site/A Brasileira do Chiado)
Foto: Reprodução/Site/A Brasileira do Chiado Estátua de Fernando Pessoa no café A Brasileira do Chiado

Hoje é um ponto turístico, bom para fotos. Mas, A Brasileira faz parte da seleta lista das Lojas com História — ao sabor dos aromas brasileiros, foram muitos os fados, as poesias, o nascedouro de jornais e manifestos. Assim, não dá para ser uma simples espiadela, o tempo de entrar e clicar. Se vais abraçar o tímido fantasma de Pessoa, acima de tudo, não olhe o horóscopo para não correr o risco de perder o encontro com o cafezinho de Lisboa. Beba isto com açúcar — o expresso não brinca: é denso e potente.

A sorte é que, como no caso do bacalhau, a bica é só um dos muitos jeitos de se beber café em Portugal. Talvez o jeito preferido. De toda forma, não importa. Vai-se a um lugar para se aprender e conhecer. Se somos brasileiros, para também nos sentirmos um pouco em casa, e ouvir, quem sabe, uns versos na mesa ao lado.

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