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A poeta portuguesa que escrevia sobre o prazer feminino
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

A poeta portuguesa que escrevia sobre o prazer feminino

Maria Teresa Horta, jornalista, escritora, poeta, grande referência na defesa dos direitos das mulheres e da liberdade, partiu aos 87 anos deste mundo. Mas deixou viva e atualíssima sua obra — e uma história de coragem que abalou inclusive a ditadura de Salazar
Tipo Crônica
Maria Teresa Horta no lançamento do livro
Foto: Divulgação/Luís Horta de Barros Maria Teresa Horta no lançamento do livro "Poesis". A foto foi tirada pelo filho da escritora, Luís Horta de Barros

Há mulheres que não se calam. São, na fala do patriarcado, desobedientes. Maria Teresa Horta, aos 15 anos, ouvia do pai: “não admito mulheres rebeldes na minha casa”. Não se intimidou. Às escondidas, distribuía panfletos revolucionários e lia Le Deuxième Sexe, de Simone de Beauvoir, com a ajuda de um dicionário. Depois, foi Marguerite Duras, Antero de Quental, Florbela, Cesário Verde. E a poesia foi abrindo caminho em sua vida. “Esta menina é estranha”, balançava a cabeça o pai, sem saber o que fazer com a teimosa.

Tornou-se uma mulher forte e de esquerda. Em 1971, ficou mundialmente conhecida como uma das Três Marias, após a escrita coletiva de Novas Cartas Portuguesas — as outras duas autoras são Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa.

Das três, Maria Teresa foi a mais longeva e a que levou mais longe a bandeira da liberdade — suas poesias falam sobre o prazer feminino, o erotismo, a linguagem do corpo. Sob a ditadura de Salazar, de novo às escondidas, as Três Marias escreveram sobre o colonialismo, a pobreza, a condição das mulheres, a violência doméstica, o aborto, a violação, o sexo.

Cento e vinte textos entrelaçados — cartas, notas, poemas, ensaios, citações. Mas, a ditadura tampouco admitia mulheres rebeldes em Portugal. Três dias depois do lançamento da primeira edição, o livro foi censurado e apreendido. As três desobedientes foram acusadas de pornografia e atentado à moral pública — o julgamento arrastou-se até maio de 1974, já após a Revolução dos Cravos (que pôs fim à ditadura, que estava há 48 anos no poder). A notícia ganhou os jornais do mundo e mobilizou ativistas.

Simone de Beauvoir e Marguerite Duras organizaram manifestações junto às embaixadas de Portugal e a National Organization for Women considerou a mobilização pelas Três Marias a primeira causa feminista de impacto internacional.

Hoje, traduzido em várias línguas, estudado em universidades — também pela teoria feminista e estudos de gênero —, a obra é mais falada e conhecida que lida, pelas mulheres e homens de Portugal e do Brasil. Mas quem leu, não esquece. Nele, as três refletiram sobre as nossas questões tão humanas, desde sempre. Passou para a cabeça da minha lista de obras a ler.

Em Minha Senhora de Mim (1971), Maria Teresa Horta reuniu 59 poemas, utilizando-se da forma de antigas medievais, para palmilhar o território do erotismo: ela, guiando o amante pelas veredas de seu corpo. Escritas por homens, as cantigas de amigo medievais traziam a voz feminina sofrendo por amor. Teresa reverteu isso, nos seus poemas. De submissa, a voz feminina torna-se imperativa e no comando. Esvaziado do caráter procriador, o sexo é prazer. Por causa desse livro, foi perseguida pela ditadura e espancada por três homens na rua.

Tudo isso, e tanto mais, em uma única vida — numa mulher e tanto. E tantas. Quantas Marias somos? Deixou-nos, mas fica a inspiração da coragem e o convite de seus versos, que bebem o leite e o mel dos tempos passados, quando cultivávamos a arte de amar, e não da barbárie tão atual. A menina “rebelde”, que pelo “bem da nação” foi censurada e espancada, deixou-nos versos libertadores, inspiradores, insubmissos.

Maria Teresa Horta — com delicadeza e inteligência — afrontou o regime ditatorial e nos ajuda hoje na luta contra a misoginia. Há mulheres assim, sobre as quais podemos dizer, décadas e décadas depois, “ainda está aqui”.

Foto do Ariadne Araújo

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