Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Um carioca, amante do esculacho, foi editor por um dia do jornal português, o Publico. Gregório Duvivier — ator, humorista e escritor — tomou posse na redação na manhã dia 5 de março, aniversário dos 35 anos do jornal. Mas, sendo uma Quarta-Feira de Cinzas, o "biscate" do brasileiro se acabou no fim do dia — junto com o Carnaval
Foto: Divulgação/Ana Marinho
Gregório Duvivier
Na Quarta-feira de Cinzas, o humorista, ator e escritor brasileiro Gregório Duvivier — um dos fundadores do Porta dos Fundos — “carnavalizou” a edição do jornal português, o Público, desfilando pelas páginas o tema “Da minha língua vê-se o mundo”.
Convidado para ser editor por um dia, e chacoalhar o aniversário de 35 anos do jornal com uma dose de humor, troca de saberes e reflexão política sobre a língua portuguesa, Duvivier não quis ficar sozinho nesse “biscate”. Convidou poetas, humoristas, ilustradores e escritores de vários países falantes do português, para dividir com ele a função. “Não me sinto bem em cargos de chefia”, explicou, no editorial.
Duvivier, que teria adorado cursar uma faculdade de esculacho, começou o dia de trabalho a sério jogando Scrabble. Escolheu como parceiro de jogo o angolano Kalaf Epalonga, músico e escritor, fundador da banda Buraka Som Sistema, que contribuiu para a internacionalização do Kuduro.
O embate de palavras foi virtual — entre o Rio de Janeiro, de onde o brasileiro pilotou a edição do jornal, e Berlim, onde Kalaf vive atualmente. Na tela do computador, os dois escritores passearam com humor pela língua portuguesa.
Saiu no tabuleiro e na conversa um pouco de tudo: o quimbundo, o umbundo, o ovibundo, o ambundo e, claro, o velho português falado nas ruas do Brasil, misturado às palavras vindas dos povos originários e as introduzidas pela presença africana. Amuado, bunda, bagunça, maribondo.
O jogo mostrou aos leitores que a língua é elástica, política, subversiva. E pode enganar — “bico” em Portugal não significa o mesmo que “biscate”, no Brasil. Melhor fazer atenção a estas sutilezas da língua que, viajante, vai tomando outros caminhos e interpretações. Da língua, vê-se e entende-se o mundo. Mundos.
No jogo-conversa dos dois escritores — o Scrabble provoca tais reflexões—, surgiu a palavra “imposição”, a da língua portuguesa, no período de colonização, seja no Brasil, seja em Angola. Tantas palavras silenciadas, apagadas, proibidas, esquecidas, substituídas por outras mais “apropriadas”, no jogo das relações de poder. Imposição que, neste sentido, perdura.
Kalaf perdeu na escola a capacidade de falar o ombundo, de seus ancestrais — a Angola tem 8 línguas nativas, a Guiné-Bissau tem 22 línguas. O português é visto pelas elites como aposta mais pragmática, com efeito de rede em torno de um só idioma (9 países falam o português; embora seja a língua oficial em Macau, é falada apenas por 0,7% da população).
De cima para baixo, a gente vai aceitando a língua, vendo-a como normal, como legítima, sem pensarmos muito nos seus “fios ideológicos”. Sei disso de feridas na carne, nas experiências no terreno cotidiano — minha e de tantos outros brasileiros e brasileiras, em Portugal.
Às vezes, para não dizer muitas, somos alvos de um certo olhar superior, de quem se acredita falar a “língua legítima”, a “oficial”, a de “raiz”. De quem considera erro ou desvio toda forma de variação (Bourdieu refletia sobre isso). O brasileiro e o angolano sabem: há violência nas palavras — elas não são neutras. Mesmo se todos precisamos delas, para viver e trabalhar.
Por isso, trazer o Scrabble para a edição especial do jornal foi uma grande sacada. No tabuleiro, as palavras se interligam, modificam-se, cruzam-se, em harmonia, sem importar sotaques e origens. Dão-nos uma aula de encontros e desencontros — brasileiros e angolanos entendem-se, divertem-se com as sutilezas da língua, irmanam-se.
Na mesma língua, encontrar palavras em tupi, em bantu, em crioulo: tornar esta língua mais elástica e inclusiva. E enquanto isso, fazer como os dois artistas, em continentes diferentes: não exercer com elas poder, nem botar distâncias, mas achar graça e partilha com/das palavras.
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