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O botão dos quiproquós linguísticos
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

O botão dos quiproquós linguísticos

Em duas semanas, embarco de volta para casa, em Portugal, depois de quatro meses no Brasil, e começo já a fazer o clique das mudanças linguísticas e comportamentais. É como entrar em um túnel e, lá no meio, antes de ser cuspida para fora, no aeroporto internacional de Lisboa, incorporar a pele do meu avatar português: lá sou uma miúda, uma menina, uma rapariga. Acima de tudo, uma brasileira
Torre De Belém Ao Pôr Do Sol Em Lisboa, Portugal (Foto: Divulgação/Pexels/Dmitry Voronov)
Foto: Divulgação/Pexels/Dmitry Voronov Torre De Belém Ao Pôr Do Sol Em Lisboa, Portugal

Pensava em escrever sobre a arquitetura hostil nas grandes cidades, que tanto serve para manter afastados pombos, cães de rua e sem-abrigos —para muita gente nesse mundo, se equivalem —, mas tem um botão no fundo da minha cabeça que acendeu a luz e não quer apagar. Então aceito, decidi escrever sobre a arte de pisar em ovos de quem vive entre dois países irmãos: Brasil e Portugal.

Estando aqui, nestes dias em Brasília e pensando no Ceará, recebo perguntas dos amigos portugueses: quando voltas, miúda? Sou uma miúda lá e uma senhora aqui. Disso eu até gosto. Podem continuar me chamando de miúda e menina, que eu atendo. Moça, não. Moça em Portugal é malvisto. Sabe-se lá quando isso começou, é como chamar uma mulher ou um homem de “vagabundo”. Corro logo, desde o aeroporto, não chamem ninguém aqui de moça ou moço.

Agora o caso das despedidas fica em aberto. Os tais beijinhos que os portugueses lançam a torto e a direito: se fizermos as contas, quem manda muitos não manda nada. Nós, os brasileiros, preferimos os beijos, pronto. Ou o econômico beijo, um só, mas sincero, assim esperamos. Para Portugal, no caso dos beijinhos, beijos parecem despedidas secas, sem o carinho do diminuitivo.

Nas correspondências, lança-se ao fim “melhores cumprimentos”, e nós “atenciosamente”, que eu até prefiro. Mantenho-me, aliás, fiel ao “atenciosamente”, digam o que quiserem. E, para chatear, “sem mais para o momento”. Meu corretor do computador, parecendo adivinhar a minha volta, já anda trocando letras: escrevo louça, ele corrige loiça.

Estes quiproquós linguísticos entre dois países de língua portuguesa são normais e poderiam nos fazer rir — ao invés de serem usados como prova cabal de uma diferença profunda, como querem alguns. Não precisaríamos policiar nossas palavras, nem ouvir comentários desagradáveis do interlocutor: “ah, vocês, brasileiros”. E é como se eu fosse, esta miúda que vos fala, o Brasil inteiro.

E já lá se vão 12 anos de vida em Portugal. E estas coisas ainda me irritam. E se me mandam “vai de volta para a tua terra”, eu sou capaz de voltar, e com muito gosto. Ou não, já que xenofobia é crime e no Brasil também tem. Aprender a dar beijinhos, todos precisamos.

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