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Curadora Kênia Freitas ressalta caráter coletivo do Cinema do Dragão
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Curadora Kênia Freitas ressalta caráter coletivo do Cinema do Dragão

Há um mês à frente da curadoria do Cinema do Dragão, Kênia Freitas fala ao Vida&Arte sobre desafios, equilíbrios e projetos do equipamento
Tipo Opinião
Kênia Freitas, curadora do Cinema do Dragão (Foto: Luiz Alves / divulgação)
Foto: Luiz Alves / divulgação Kênia Freitas, curadora do Cinema do Dragão

Em 16 de março, Kênia Freitas — professora, pesquisadora e crítica nascida em Colatina (ES) — foi anunciada como a nova curadora do Cinema do Dragão. Pesquisando afrofuturismo e cinema negro, ela integra o Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine) e participou da curadoria de eventos como o CachoeiraDoc - Festival de Documentários de Cachoeira e o Festival de Cinema de Vitória. Em entrevista por telefone à coluna na quarta, 13, Kênia compartilhou visões sobre cinema de rua, busca de equilíbrios e experiências coletivas.

O POVO - Na sua trajetória como crítica, curadora, professora, qual sua relação com o Ceará e o cinema daqui?

Kênia Freitas - A primeira vez que vim para cá foi em 2004, 2005, estudante. Fui em uma sessão no (Cineateatro) São Luiz que era uma coisa bem "Sessão da Tarde", lotada, de tarde, uma experiência de sala de cinema de rua bastante impressionante. Partindo do cinema, do cineclubismo, cinefilia, fui conhecendo filmes, diretores como o Karim (Aïnouz), dessa geração, e pouco depois peguei o processo todo da Alumbramento (coletivo de cinema cearense) como espectadora, acompanhando em festivais. O cinema brasileiro naquele momento estava se estruturando de outras formas, com a ideia dos coletivos, do "novíssimo cinema". Depois disso, fui fazendo amigos mais próximos de Fortaleza que me falavam sobre o projeto da Vila das Artes (escola pública de artes da Prefeitura), até que a coordenação de lá me chamou para dar aula. No começo de 2020 vim dar um módulo de férias. Foi o momento que eu vim, um pouquinho antes da pandemia, para conhecer a Vila, mas ao mesmo tempo já conhecia várias pessoas ligadas, tinha proximidade de trocar ideia com o pessoal da Negritude Infinita (plataforma cearense de reflexão, mapeamento e exibição dedicada ao cinema negro brasileiro) e a produção que saía dali foi uma da qual eu me aproximei muito. Ao longo da pandemia, acabei dando aulas em cursos daqui, como no Centro Cultural Bom Jardim. Um processo também bem importante de aproximação foi a participação na banca da sexta turma de Audiovisual da Vila das Artes. Nesse momento, percebendo os currículos e portfólios das pessoas, foi possível compreender um pouco mais do circuito formativo daqui, como ele é variado. Chamou a atenção a possibilidade múltipla de formações que a Cidade tinha e como várias pessoas que estavam naquele processo tinham passado por mais do que uma delas. Na história recente do cinema brasileiro, Fortaleza e Ceará vão ter espaços e, agora, essa geração dos cinemas feitos por pessoas negras, não-brancas, periféricas, também têm, e acho que muito graças a esses circuitos formativos.

 OP - Quando do anúncio do seu nome, você falou de "possibilidades de ampliação" dos cinemas negro e de mulheres. De que formas isso vem sendo buscado?

Kênia - É um projeto de médio prazo. A gente teve a Quilombo Cearense (mostra com filmes de pessoas não-brancas realizada entre os dias 8 e 10 de abril com curadoria de Darwin Marinho e Talita Arruda), mas não se pode pensar isso na conta de um projeto que eu fiz, porque não foi mesmo, já existia, estava alocado no Cinema. Foi uma feliz coincidência que eu estivesse aqui no momento. Isso já destaca que já se tem os cinemas negros e feitos por mulheres aqui. Pensando no quanto o cinema mudou nesses últimos anos, nesse recorte mais recente, há 10 anos algumas discussões de racialização e gênero que a gente faz com muito mais força agora — e falo de uma forma coletiva, mesmo, com os festivais, a crítica — ou não existiam ou eram colocadas como “reivindicações identitaristas” que não diziam respeito a uma conversa inteira. A gente está em um momento entendendo a necessidade dessas ampliações e incursões das agências plurais dentro do cinema, o que também é um desdobramento dos circuitos formativos, dos acessos a essas produções. A crítica, a curadoria e a formação têm respondido a isso. Quando falo dessa vontade, é sobre estar atenta e enfrentar esse desafio. Para a programação, é um desejo de perceber, dentro do que chega para a gente no circuito das distribuidoras, quais são os filmes que a gente pode trazer, como equilibrar filmes de diretoras e diretores mais conhecidos, que já estão no circuito proeminente, e outros um pouco menos conhecidos, o que faz parte desse gesto formativo que a curadoria já fazia, esse equilíbrio de trazer propostas e cinemas plurais. Nessa semana (até 20 de abril), a gente está com duas estreias super badaladas, que são “Pequena Mamãe” e “Vitalina Varela”, de diretores consagrados (a francesa Céline Sciamma e o português Pedro Costa, respectivamente), mas na semana passada a gente estreou o “Visões do Império” (dirigido por Joana Pontes, que aborda os imaginários e documentos do império português desde o final do século 19 até a revolução os anos 1970), um documentário português de uma diretora estreante que trazia uma discussão que parecia pertinente sobretudo na conversa com a programação da semana (Mostra Quilombo Cearense). É muito esses equilíbrios entre o cinema brasileiro, filmes mais conhecidos, menos conhecidos. É um quebra-cabeça grande, sobretudo nesse momento que o Cinema está só com uma sala.

OP - O Dragão é singular, um equipamento público com um preço mais acessível, que foge do esquema comercial, mas há essas camadas na produção que abarca.

Kênia - Eu acho lindo ver Pedro Costa na tela grande, e obviamente o público de Fortaleza quer ver também. É interessante notar nesse circuito isso que você falou. Ele já é, dentro do universo do cinema, um recorte, mas por outro lado é um universo de filmes que vão desde alguns de pequenas distribuidoras que trabalham com quatro ou cinco obras e onde o deslocamento das cópias é toda uma questão até distribuidoras que, dentro desse circuito menor, já são muito maiores, trabalham com mais cópias, estão em outro sistema. A gente também está falando de circuitos de distribuição diferentes mesmo dentro disso que a gente pode pensar como cinema “alternativo”, não-hegemônico, que sai das grandes distribuidoras para aquelas de médio a pequeno porte.

OP - Que relações a sua bagagem pregressa em mostras, festivais, têm com a programação de um cinema de rua, público?

Kênia - De fato, as vezes que trabalhei com curadoria foram experiências de propor uma mostra, ser convidada para participar de equipes, em eventos, então a experiência da programação cotidiana é nova. Mas, por outro lado, a minha aproximação com a curadoria passou pela produção de cópias, que é essa experiência de contatos com distribuidoras, acervos, que está sendo bastante importante para o exercício que não é só do evento pontual, da curadoria que fecha conceito, seleciona, mas também de como fazer isso acontecer. A grande questão, pensando a função do cinema de rua, com programação regular, é a gestão de outras questões. Quando a gente fala de um trabalho como esse no Dragão, ele não é, de forma nenhuma, individual. É de equipe, passa por um monte de gente, por uma estrutura, uma instituição. Penso no quanto a gente pode, e deve, deslocar a ideia do curador ou da curadora como uma figura isolada, com autoria. É um trabalho, feito em parceria com várias pessoas, dependendo de vários aspectos, onde se precisa entender o contexto, entender que o cinema existe no mundo. Quando se está programando uma sala como o Dragão, a gente vai entender não só o público, mas o contexto, o entorno. Por exemplo, você pode pensar que uma sessão de 20 às 22 horas seria a melhor do mundo, mas aí vê que tem uma grande parte do público que não pode sair do cinema nesse horário, fica complicado. São questões de entendimento do ambiente, do todo. O trabalho de programação, quando se olha para ele como um trabalho, se dá a partir disso também, dessa abertura para entender o ambiente, da escuta do que está sendo colocado.

OP- Você citou bastante espaços formativos, e o Cinema pode e deve ser formativo.

Kênia - Essa é a ideia que a gente tem, seja no sentido de trazer repertório, seja pelo lado dos debates, das mostras, trazer não só os filmes, mas também o momento da conversa, do falar sobre. A experiência do cinema de rua é desse lugar de encontro. Um espaço onde as pessoas conseguem estar juntas e conversar, não só assistir ao filme como consumo, como algo individualista — a gente sabe que cada vez mais certo mercado se volta para uma experiência individualizada, isolada —, mas como experiência coletiva, como estar junto, como encontro, seja nas sessões regulares, seja nos momentos que a gente consegue fazer debates, encontros, seminários, mostras.

 

Foto do João Gabriel Tréz

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