Miguel Franco, 26, é tutor de uma rottweiler chamada Hakira, de 7 anos. “Quando ela tinha 5 meses apresentou (um) humor alterado (irritadiça), falta de apetite, seu crescimento havia estagnado e as unhas cresceram muito mais do que o normal. Fizemos o teste e foi confirmada a leishmaniose”.
Medo constante para donos de cachorros, a leishmaniose visceral — também conhecida como calazar — ganhou relevância nos últimos meses após a suspensão da venda e da fabricação da Leish-Tec pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Ela era a única vacina contra a doença canina disponível no mercado brasileiro.
O motivo foi a detecção de um desvio de conformidade: o teor da proteína A2 estava abaixo do limite mínimo estabelecido na licença do produto. Isso, de acordo com o Mapa, “pode ocasionar a falta de eficácia da vacina, gerando risco à saúde animal e à saúde humana".
Desde o diagnóstico da doença, Hakira fazia uma imunoterapia com a Leish-tec. A cachorra tomava o imunizante a cada seis meses. “Ela deveria tomar uma dose no meio de junho, mas devido à suspensão, não tomou”, diz o tutor.
“É perceptível que ao fim do ciclo do tratamento (ou seja, próximo a tomar a dose seguinte), ela fica mais arisca, tem perda de apetite e por vezes apresenta diarreia e vômitos”, continua.
O calazar é uma doença infecciosa que atinge animais e seres humanos. Ela é causada por um protozoário do gênero leishmania e a transmissão é parecida com a dengue: acontece por meio da picada de um inseto, o mosquito-palha (Lutzomyia longipalpis). Nos cães, ela não tem cura. Nos humanos, apesar de curável, é uma enfermidade de alta taxa de mortalidade. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), chega a 8% no continente americano.
“No animal, (os sintomas) começam com a perda de apetite, emagrecimento progressivo, crescimento exarcebado das unhas e começa a apresentar lesões, principalmente na pontas das orelhas, no focinho e ao redor dos olhos”, explica Atualpa Soares, gerente da célula de vigilância ambiental e riscos biológicos da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS).
“A gente (também) pode ter muitos animais que as vezes não expressam muito bem esses sintomas e estão positivos”, complementa.
Os humanos podem apresentar febre de longa duração, aumento do fígado e baço, perda de peso, fraqueza, redução da força muscular e anemia.
“Os sintomas são semelhantes a muitas outras doenças, daí a dificuldade de se fazer um diagnóstico precoce. A alta mortalidade entre os seres humanos é por conta disso. O diagnóstico é tardio, na maioria das vezes”, explica Tiago Conceição, médico veterinário e dono da Virtual Leish.
Luzia Soares, 28, é veterinária e tutora de Sol, uma cadela sem raça definida (SRD), de aproximadamente 4 anos, que também tem a Leishmaniose.
A cachorra foi resgatada das ruas há cerca de dois anos. “Quando a gente pegou ela, fizemos um check-up e foi detectado que estava com a leishmaniose”, lembra. “Ela tinha as unhas aumentadas, o que chamamos de onicogrifose, e estava com alteração de pele”.
Desde então, o pet passa por um tratamento de manutenção. “Quando se pega um animal, temos que estadiar a doença (avaliar o grau de disseminação). Depois disso, se faz o tratamento inicial, a depender do estágio. Posteriormente, se mantém com um medicamento chamado de alopurinol, um leishmaniostático que vai inibir a multiplicação da doença”.
Sol não chegou a ser afetada pela suspensão da Leish-tec: seu tratamento não envolvia o imunizante. Outros cachorros que Luzia atende, no entanto, foram, de fato, impactados. “Eles estavam no final do protocolo de proteção e tiveram que pausar (a imunização). Eles perderam todas as outras vacinas, porque estavam nos lotes que continham alteração”, explica.
A Leish-tec estava há mais de 10 anos em circulação e era a única vacina disponível no mercado brasileiro. “A suspensão foi cautelar”, diz o Ministério da Agricultura, em nota. “O retorno da produção da vacina depende da empresa fabricante, que precisará comprovar a estabilidade do produto, eficácia, segurança e adequações ao Ministério antes do retorno”.
A empresa fabricante, a Cevas Saúde Animal, informou, em nota, que “está tomando ações internas para identificar as razões dos desvios e corrigir a situação o mais breve possível, esperando ter novas definições nas próximas semanas".
O Mapa, no entanto, ressalta que mesmo com a suspensão da vacina, existem outras formas de se proteger da doença. Uma delas são as coleiras repelentes. Os dispositivos são impregnados com inseticidas (deltametrina), que tem a função de espantar os insetos, conforme a Fundação Oswaldo de Andrade (Fiocruz). As coleiras tem duração de 4 a 6 meses e o valor fica em torno de R$ 90 à R$ 150, a depender da marca.
Por que a eutanásia não precisa ser a opção
"Hoje, a grande luta da veterinária é colocar na cabeça das autoridades sanitárias que a eutanásia não é um método de controle da doença. Existem inúmeros estudos que comprovam que eutanasiando os animais positivos (para a doença) não se reduz o número de pessoas doentes", explica o médico veterinário Tiago Conceição.
A eutanásia como uma possível forma de controle da doença surgiu no Brasil em 1963, por meio do decreto nº 51.838/1963. A legislação orientava a "eliminação dos animais domésticos doentes".
"Existem leis antigas, pessoas desinformadas e uma doença que está se expandindo silenciosamente por todo o território brasileiro", contemporiza.
Em 2021, a situação se tornou um pouco menos problemática. A Lei 14.228/2021 proibiu a eutanásia indiscriminada de animais com esporotricose e leishmaniose. O procedimento só pode acontecer em animais com males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem a saúde humana e a de outros animais em risco. Além disso, o procedimento precisa ser justificado por um laudo do responsável técnico.
"No passado, os animais positivos teriam que ser eutanasiados de qualquer forma. Hoje não. Perante a lei, existe a legalização do tratamento", adiciona a também veterinária Luzia Soares.
É importante destacar que os cachorros não transmitem a doença diretamente para os humanos. O contágio se dá exclusivamente pela picada do mosquito-palha. "Existe um preconceito muito grande com animais positivos", destaca Tiago. "Não adianta a gente matar o cachorro. Ele é a vítima da história".
Como se prevenir da leishmaniose visceral
A prevenção da leishmaniose visceral ocorre por meio do combate ao inseto transmissor, o mosquito-palha. Não ao animal infectado.
"O mosquito [palha] tem uma tendência maior de proliferação em ambientes que têm acúmulo de matéria orgânica", explica Atualpa Soares. "Então, aqueles locais que tem muito lixo acumulado, restos de vegetação, terrenos perto de locais mais úmidos, podem predispor um acúmulo (maior) de mosquitos".
De acordo com o Ministério da Saúde, é possível manter o mosquito transmissor longe da população seguindo algumas orientações:
- Limpeza periódica dos quintais, retirada da matéria orgânica em decomposição;
- Destino adequado do lixo orgânico, a fim de impedir o desenvolvimento das larvas dos mosquitos;
- Limpeza dos abrigos de animais domésticos, além da manutenção dos pets fora de casa, especialmente durante a noite, a fim de reduzir a atração dos mosquitos para dentro da residência;
- Uso de inseticida (aplicado nas paredes de domicílios e abrigos de animais). No entanto, a indicação é apenas para as áreas com elevado número
de casos.