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A disputa paleontológica da repatriação do "dinossauro irritado"
Ciência e Saúde

A disputa paleontológica da repatriação do "dinossauro irritado"

Na esteira da repatriação do Ubirajara jubatus, cresce a pressão pela volta ao Cariri do Irritator challengeri, também traficado para a Alemanha
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Paleoarte da nova publicação sobre o Irritator challengeri mostra a mandíbula do dinossauro com abertura mais ampla. (Foto: Olof Moleman)
Foto: Olof Moleman Paleoarte da nova publicação sobre o Irritator challengeri mostra a mandíbula do dinossauro com abertura mais ampla.

 

 

O Irritator é um conhecido da paleontologia brasileira. Descrito em 1996 por David Martill e Eberhard Frey — também envolvidos na descrição do Ubirajara jubatus —, o primeiro dinossauro observado com uma vela nas costas carrega no nome a ironia de ser um dos muitos fósseis traficados do Cariri para a Alemanha.

O nome completo dele é Irritator challengeri, emprestando as palavras inglesas para “irritação” (irritation) e “desafio” (challenge). O intuito dos paleontólogos era demonstrar como foi difícil e estressante analisar o fóssil que tinha sido adulterado com massa plástica pelo peixeiro que escavou e vendeu o material do Cariri cearense.

Crânio do Irritator challengeri coberto por massa plástica usada em cimento, antes do tratamento.(Foto: Reprodução/Twitter Darren Naish)
Foto: Reprodução/Twitter Darren Naish Crânio do Irritator challengeri coberto por massa plástica usada em cimento, antes do tratamento.

O caso é tão bem documentado que se sabe até quem foi o peixeiro: Euclides, conhecido na região por alterar os fósseis que escavava. “Ele dizia que era a arte dele. Ele não entendia que o fóssil não podia ser mexido nem acrescentado nada”, relembra Álamo Saraiva, paleontólogo da Universidade Regional do Cariri (Urca).

Quase três décadas depois, o Irritator volta para a boca do povo. Agora com um pedido já bem conhecido por aqueles que lutam contra o tráfico de fósseis e contra o colonialismo científico: #IrritatorBelongsToBR (Irritator Pertence ao BR, em inglês).

 

 

Entenda o caso

Localizado no acervo do Museu Estadual de História Natural de Stuttgart (SMNS), Alemanha, o crânio do Irritator challengeri foi estudado novamente em um artigo científico publicado em maio de 2023 na revista científica Palaentologia Electronica.

Nele, os pesquisadores, todos estrangeiros, apresentaram a hipótese de que a mandíbula do Irritator abriria como as das serpentes. Ou seja, eles conseguiriam abrir a boca a ponto de engolir animais relativamente grandes de uma só vez.

Da família dos espinossaurídeos, o Irritator ainda é um dinossauro esquisito para a paleontologia. Em geral, entende-se que esses bichões de até 10 toneladas eram piscívoros, mas não há consenso sobre se os espinossaurídeos viviam completamente na água ou não.

Paleoarte da nova publicação sobre o Irritator challengeri mostra a mandíbula do dinossauro com abertura mais ampla.(Foto: Olof Moleman)
Foto: Olof Moleman Paleoarte da nova publicação sobre o Irritator challengeri mostra a mandíbula do dinossauro com abertura mais ampla.

Cientes da origem ilegal do fóssil, os autores da pesquisa adicionaram uma declaração ética no artigo explicando a história do Irritator. Nela, eles também disponibilizaram os modelos em 3D do crânio para serem estudados e propuseram entregar uma réplica do material.

A nota e a ideia, no entanto, foram recebidas com descontentamento pelos paleontólogos brasileiros. Clique na foto abaixo para ler a declaração completa:

 
Paleoarte do Irritator challengeri i
Saiba mais
Clique na imagem e leia a declaração ética completa.

 

 

 

Pesquisas com fósseis ilegais não deveriam ser publicadas

O presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), Hermínio Ismael de Araújo Júnior "Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)." , destaca que a declaração ética é insuficiente. “Eles têm que respeitar o que está na lei brasileira. Eles estão dispostos a disponibilizar réplicas e modelos 3D, mas não é isso que está dito (na lei)”, reforça.

Isso porque a legislação define que holótipos "Fósseis usados para a descrição de novas espécies. O crânio do Irritator é um holótipo porque foi dele que os pesquisadores descobriram e descreveram a espécie."  brasileiros devem estar em território e em coleções nacionais. Além disso, obriga que qualquer publicação com fósseis do Brasil no exterior, holótipos ou não, deve ter participação de paleontólogos brasileiros.

Crânio analisado do Irritator challengeri.(Foto: Reprodução/Pesquisa)
Foto: Reprodução/Pesquisa Crânio analisado do Irritator challengeri.

Portanto, o próprio artigo do Irritator deveria ser retirado do ar. “A de 96 (que descreve o dinossauro) também deveria ser invalidada, mas é muito difícil porque ela já está há muito tempo no conhecimento científico”, explica Hermínio.

A pesquisa de Schade chegou a ser retirada do ar por alguns dias da Palaentologica Electronica, mas já foi republicada. O presidente da SBP reforçou que irá contatar a revista científica para entender a decisão.

A paleontóloga Aline Ghilardi, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e uma das mobilizadoras do movimento #UbirajaraBelongsToBR, afirma que a nota é uma tentativa de “‘lavar’ o fóssil e transferir o problema”.

Ilustração publicada no twitter Archesuchus mostra uma conversa entre o Irritator challengeri e o Ubirajara jubatus. Irritado? Eu também, eu também, diz o Ubirajara(Foto: Reprodução/Twitter Archesuchus)
Foto: Reprodução/Twitter Archesuchus Ilustração publicada no twitter Archesuchus mostra uma conversa entre o Irritator challengeri e o Ubirajara jubatus. Irritado? Eu também, eu também, diz o Ubirajara

“Nota ética não é suficiente quando esta nota é avaliada por revisores e editores que não conhecem a legislação brasileira e a situação do Brasil em relação aos fósseis. A nota ética apresentada pelos autores desse novo paper do Irritator, por exemplo, apresenta uma interpretação superficial e enviesada da nossa legislação”, critica.

“Repatriar réplicas, em caso de espécimes holótipos ou espécimes de elevada importância não é suficiente. Espécimes desse tipo podem trazer desenvolvimento e riquezas para o país, por isso o interesse do Brasil em mantê-los aqui e preservá-los”, complementa, destacando a movimentação econômica e turística em torno de museus e outros negócios indiretos, além da valorização da pesquisa nacional.

O POVO+ contatou Marco Schade por e-mail pedindo uma entrevista sobre o caso. Em resposta, o paleontólogo afirmou que preferia abster-se de qualquer outro comentário sobre o Irritator devido à complexidade do assunto. “Além de outras tentativas, dois de nós (Serjoscha Evers) estamos atualmente envolvidos em uma iniciativa internacional tentando abordar o status legal do fóssil”, afirmou.

 

 

Recepção no Cariri

O professor Álamo Saraiva, coordenador do Laboratório de Paleontologia da Urca (PaleoLab), ressaltou a péssima repercussão da declaração ética.

"Olha, foi recebido de forma muito negativa, porque o cara tenta se isentar do problema de estar trabalhando com fóssil ilegal. Na nota, eles dizem que reconhecem um problema ético com o fóssil mas dizem que são cientistas e não têm nada a ver com isso”, explica. “Isso eu achei que foi até uma forma de insulto, de dizer o seguinte: ‘Nós vamos publicar mesmo, eu não quero saber, não’”.

Esqueleto reconstruído de um Irritator no Museu Nacional de Ciência do Japão, Tóquio.(Foto: Kabacchi)
Foto: Kabacchi Esqueleto reconstruído de um Irritator no Museu Nacional de Ciência do Japão, Tóquio.

Vale destacar que estudar fósseis contrabandeados também influencia na qualidade da ciência. Materiais traficados perdem dados essenciais para análises completas, como informações do local de onde foram escavados, além das adulterações (como a do próprio Irritator) e até da separação de partes complementares dos fósseis.

O caso da Tetrapodophis, fóssil cearense também traficado, exemplifica muito bem esse lado do colonialismo científico e tráfico de fósseis. Antes interpretada como cobra, descobriu-se que era na verdade um lagarto.

De acordo com o Hermínio, a SBP está trabalhando em uma carta sobre o caso do Irritator challengeri a ser enviado para o governo alemão. Tanto ele, quanto Álamo e Aline, veem o sucesso do movimento de repatriação #UbirajaraBelongsToBR como combustível para engajar novos pedidos.

Desde 96, a Urca já tinha tentado a devolução do Irritator. Agora, o Ubirajara abre precedentes e empodera a comunidade paleontológica brasileira. “Isso demonstra que é necessário respeitar as leis dos países e a soberania deles. Estamos insatisfeitos com o desrespeito e o colonialismo científico, especialmente dentro do contexto das nações que sofrem com esse processo”, afirma Hermínio.

“Nós não vamos aceitar isso, a verdade é essa”, diz Álamo, confirmando que o movimento #IrritatorBelongsToBR irá espelhar-se no do Ubirajara.

Já a paleontóloga Aline Ghilardi reforça que é tempo de reformar a maneira que se faz Ciência. “As atitudes colonialistas ainda são muito fortes, especialmente na paleontologia, e isso têm ajudado a manter as assimetrias de poder que observamos no mundo atual. Se quisermos avançar para um mundo mais justo, igualitário e diverso, as mudanças devem estar presentes nas formas como agimos em diferentes esferas da sociedade. Inclusive na Ciência.”

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