Karim Aïnouz: "Tinha uma saudade danada de poder filmar no Ceará"
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Do inglês britânico de "Firebrand", longa que marcou neste ano a estreia do diretor e roteirista cearense em um filme de língua inglesa, ao "cearensês" de "Motel Destino", novo projeto do cineasta que acaba de ser gravado no Ceará. Um dos principais nomes do audiovisual do Estado, Karim recebeu a coluna para uma entrevista no último domingo, 17, no Cinema do Dragão, para tratar de temas políticos, temáticos e estéticos. Nas falas, o artista sustenta a importância do futuro filme, primeiro gravado no Ceará em dez anos, em níveis afetivos e políticos. "Nunca tive uma sensação de casa tão forte quanto agora", resume.
O POVO - Fazer o primeiro projeto após a experiência de estreia em inglês no Ceará tem certo simbolismo. Isso foi uma decisão ou algo circunstancial?
Karim - Nunca é muito planejado. Teve o tempo do cinema e o tempo da política. A gente ganhou um edital da Ancine de filmes de baixo orçamento, teve golpe e eu tinha meio que desistido com tudo que aconteceu, com a eleição da extrema-direita. Nunca imaginei que o contrato ia ser honrado. Curiosamente, em novembro do ano passado, foi. Tinha acabado de fazer o "Firebrand", que foi incrível, mas era no meio da Inglaterra, primavera que parecia inverno — e "Motel" pra mim sempre foi muito solar — e tinha outro filme para esse ano, "Rosebushpruning" (próximo projeto em inglês de Karim). Fiquei debatendo com os produtores: "preciso voltar ao Brasil, preciso fazer um filme em português". Uma das coisas mais curiosas do "Firebrand" foi que, apesar do inglês ser minha segunda língua, é muito diferente quando você dirige um ator na tua língua e na língua estrangeira, por mais familiar que seja. Torci que o outro fosse um pouco adiado — e foi, aconteceu a greve (dos roteiristas e dos atores em Hollywood, em maio). Daí, a gente mobilizou tudo o que podia (para "Motel Destino"). Estava com muita saudade de filmar em película — desde "Praia do Futuro" (2014). Parece bobagem, mas os primeiros curtas que fiz aqui foram em Super-8 (formato de filme) com uma emulsão que deixava as cores muito saturadas e o 16mm (usado no atual projeto) tem essa natureza, então teve a memória do começo. Foi uma volta para casa muito encantadora, um desvio de roteiro, mas bom.
Karim - Tem a relação com o mar, que é muito forte desde pequeno, e com o sertão, que é de memórias contadas principalmente pela minha avó. Tenho três curtas filmados aqui, aí fui fazer três ou quatro filmes no Rio de Janeiro, uma série em São Paulo... Apesar de ter filmado aqui, não filmei suficientemente. O mais filmado aqui, no sentido profundo mesmo, foi "O Céu de Suely" (2006, gravado em Iguatu). Tinha uma saudade danada de poder filmar no Ceará. Não é só uma questão geográfica, de luz e da cor do céu, mas afetiva. Foi muito bonito redescobrir não só adireção de atores que falam português, mas "cearensês". Tem uma sensação de familiaridade, de caixas de memórias sendo abertas — talvez por estar ficando mais velho, por não ter filmado aqui há tanto tempo. Nunca é só a cena, tem a cena e a memória que tenho de coisas parecidas, em ambientes parecidos. É difícil explicar com poucas palavras, mas é como se você fosse meio tomado pela memória e isso de fato deságua na hora que diz "ação". Nunca tive uma sensação de casa tão forte quanto agora.
OP - "A Vida Invisível" (2019) era apresentado como um "melodrama tropical", enquanto "Motel Destino" está sendo divulgado como um "thriller erótico" com influências do cinema noir. Isso vem a serviço de que temas?
Karim - É um "noir equatorial". Um dos grandes temas do gênero são personagens fraturados, com moral duvidosa, algum grau de transgressão na maneira como encaram a vida. Uma coisa que me fazia muita falta depois do "Firebrand" era fazer um filme altamente erótico, com muita pele exposta. O cinema noir não tinha pele, mas tinha moral exposta. Outra coisa que me influenciou muito é a pornochanchada. Não fui criado vendo porque era muito novo, mas vi quando era mais velho. (O longa) tem a ver com olhar para o crime como um lugar possível de fazer um raio X do que está acontecendo na sociedade — o noir faz isso, então daí a matriz dele, mas fazendo de um jeito local, equatorial. O noir tem uma coisa da sombra, que vem do expressionismo alemão, e aqui tem a cor, porque quando a luz equatorial bate nas coisas é quase como se as cores ficassem elétricas. É olhar para o cinema de gênero pensando na possibilidade de uma ponte eficaz para chegar num público maior de um jeito que seja absolutamente local, com sotaque e musicalidade daqui.
OP - Neste momento de retomada de produção, Ministério da Cultura, debates, como as experiências das políticas culturais no Ceará podem agregar?
Karim - Voltando à tua primeira pergunta, uma das coisas mais tesudas de "Motel Destino" foi ter feito com uma equipe que, grande parte, direta ou indiretamente, tinha passado pelo Porto Iracema das Artes (escola de formação em artes que completa 10 anos em 2023). Foi de fato criado uma espécie de "terroir" (termo francês que designa terra cultivada) para que as coisas pudessem nascer e crescer de um jeito orgânico. É muito corajoso um investimento como o Porto, porque não dá frutos no ano seguinte, mas na geração. É muito profundo ter investimento público em cultura que não seja de curto prazo, porque ela não é de curto prazo. Essa geração foi formada não só pelo Porto, mas pela Casa Amarela, Vila das Artes, curso da UFC. Existe uma movida com relação à compreensão do audiovisual e da importância dele. Só comecei a fazer cinema porque fui embora, não era um trabalho, uma possibilidade, um fato. Uma das grandes alegrias de "Motel" foi ter trabalhado com essa geração.
OP - Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, você estava começando o circuito de sucesso de "A Vida Invisível". Quatro anos depois, primeiro ano do terceiro governo Lula, você acaba de gravar um novo filme. Como esses contextos políticos impactaram suas decisões práticas e criativas?
Karim - Eu não estaria falando com você hoje, respirando inclusive, se o Lula não tivesse sido eleito presidente em 2002. Não teria feito cinema, nunca teria feito "O Céu de Suely", estaria fazendo outra coisa da vida. Devo minha vida como operário do audiovisual às políticas públicas do governo do PT. Fui muito feliz quando o Lula foi eleito em 2002, mas nunca fui tão feliz como com a retomada do poder agora em 2023. Mas comigo não tem tempo ruim, entendeu, durante… Eu não falo o nome desse presidente (Bolsonaro) porque esse cara tem que ser preso. Durante esse momento da extrema-direita no poder no Brasil, fui fazer outras coisas em outros lugares, porque realmente aqui era terra arrasada. É muito difícil construir uma coisa, já destruir é muito fácil. Meu grande medo era que, depois desses quatro anos, a gente precisasse de mais 15 para retomar. Uma das coisas mais felizes fazendo "Motel Destino" é que não (precisou): a gente está retomando a vida, o trabalho, a possibilidade de sonhar de novo. Foi determinante a mudança que houve depois das últimas eleições, se não a gente provavelmente nem estaria aqui, nem você nem eu estaríamos trabalhando. A gente tem que celebrar. Fico muito feliz com a capacidade de cicatrização que a gente está tendo. O que eles fizeram é perverso, porque não fecharam a Ancine, sangraram o audiovisual. Conter essa hemorragia de maneira tão rápida é muito impressionante e senti isso em "Motel Destino". Se entrasse um fascista ali, ia ter um ataque cardíaco porque era um set super diverso, basicamente de mulher. Era o pesadelo do fascismo. Estamos aqui para gerar pesadelos para os fascistas.
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