Nascido em Fortaleza, o cineasta Karim Aïnouz passou a vida tendo que soletrar ou repetir o próprio nome ao se apresentar em diferentes contextos. Filho de mãe cearense e pai argelino, ele carregou consigo, pelo lado materno, a convivência, o afeto e o cuidado; já do paterno, o sobrenome e uma sentida ausência. A partir de investigação pessoal sobre si e as raízes na Argélia, o artista foi ao país natal do pai em 2019 e a experiência se frutificou em dois documentários que estreiam no Brasil no próximo dia 28.
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"Nardjes A." — que acompanha uma jovem militante em meio a manifestações pacíficas e populares na Argélia — e "Marinheiro das Montanhas" — que aprofunda aspectos íntimos da vida de Karim — foram imbricados desde o princípio.
O cearense viajou ao país no início de 2019 para a pré-produção de "Marinheiro das Montanhas" e, na capital Argel, foi surpreendido pelo movimento da população contra o então presidente Abdelaziz Bouteflika (1937-2021), o que o inspirou à realização de "Nardjes A.".
A aproximação inicial das obras se estende até o lançamento, com a estreia simultânea nos cinemas. O lançamento em meio à ausência da cota de tela — política que garante a exibição de obras nacionais em cinemas que expirou em 2021 — é desafio para o diretor.
"Lançar dois filmes no meio dessa guerra que está tendo com relação à conquista desse espaço é delicado", reconhece Karim em entrevista ao Vida&Arte concedida no domingo, 17, antes da pré-estreia dos longas no Cinema do Dragão. "Mas a gente não pode represar os filmes. A gente tem que ter consciência da extensão que eles podem ocupar", avança.
Karim avalia como uma "questão seríssima" a discussão sobre a cota de tela. Projeto de lei para ampliar a validade do instrumento nas salas de cinema e TV paga foi desmembrado no início de setembro e seguiu somente com a programação televisiva. Até agora, a situação nos cinemas segue indefinida.
"Um exemplo de sucesso recente de um país que ganhou quatro Oscars — não que o Oscar seja a única medição de sucesso — e a Palma de Ouro é 'Parasita', da Coreia do Sul. Existem vários filmes feitos lá que são frutos de uma política de audiovisual que tem a ver com cota de tela, formação, um processo de longo prazo", destaca.
"É muito importante politicamente que a gente consiga ocupar esse espaço, porque senão a gente está perdendo a guerra. É uma guerra. O audiovisual é uma arma muito mais potente do que um monte de arma nuclear: ele toca o coração e o inconsciente, não é tóxica", metaforiza.
"Quantas salas 'Barbie' (filme dos EUA lançado em 2023 nos cinemas) ocupou? Quase todo o parque exibidor, é uma loucura. Sempre fico pensando ao contrário: imagina se a gente pega 'A Vida Invisível' (filme de Karim de 2019) e força ele em todas as salas americanas? Todo mundo ia ver, não tinha como não ver. Politicamente é muito importante garantir que a gente tenha espaço para consumir o que a gente faz, senão vai ficar o tempo inteiro comendo ultraprocessado", defende.
Entre temas que despontam em "Nardjes A." e "Marinheiro das Montanhas" — guerra da Argélia, colonização, movimentos populares e ancestralidades —, pode-se adicionar outro, um tanto subjetivo, mas central nos longas: o olhar.
O primeiro é, essencialmente, um documentário de observação. A personagem-título, jovem militante, é um dispositivo para apresentar ao público os contextos sócio-políticos da Argélia, partindo de movimentos populares contemporâneos para desvelar o histórico de colonização na região.
Pela narração em off da jovem e outros momentos pontuais, reflete-se sobre gerações, papel da juventude e outros debates que circundam o movimento. No entanto, a estrutura privilegia a observação à elaboração, apostando em sequências que trazem cantos e palavras de ordem em repetição.
À primeira vista, a forma de "Marinheiro das Montanhas" repete a de "Nardjes A.": o acompanhamento de um protagonista na Argélia e elaborações especialmente na narração. O diferencial, aqui, é a figura guia: o próprio cineasta.
Na busca que o leva ao país do pai, Karim promove uma viagem complexa que é tanto íntima, ligada às próprias questões, quanto social, com trocas e descobertas compartilhadas com pessoas e parentes distantes conhecidos ali.
O balanço entre os pólos torna "Marinheiro das Montanhas" mais dinâmico e multidimensional. Apresentam-se contextos do país, na capital e no interior, mas também da Fortaleza da mãe do diretor, Iracema.
O olhar é de fora, mas também de dentro, assim como Karim: ainda que não precise soletrar ou repetir o nome na Argélia, ele questiona o porquê de ser reconhecido diversas vezes como alguém que não é dali.
Desponta, então, o simbolismo de uma doença genética rara, ceratocone, que acomete Karim. Hereditária por parte do pai, a condição afeta justamente os olhos. É primeiro por eles que se dá o reconhecimento ou não da pertença — seja de Karim para os argelinos ou vice-versa. De uma parte ou da outra, o olhar é desacostumado, de estranhamento, deslocado e, ao mesmo tempo, investido.
* João Gabriel Tréz é repórter de cultura, crítico de cinema do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine)
Nardjes A. e Marinheiro das Montanhas