Cutelaria: a arte milenar de forjar uma lâmina, da brutalidade à beleza
Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Cutelaria: a arte milenar de forjar uma lâmina, da brutalidade à beleza
Yuri Saboia domina o metal a fogo e marretadas para produzir facas artesanais, únicas e exclusivas. O ofício é ancestral e cruza processos físicos, químicos e artísticos
Yuri Saboia fez 53 anos no dia que conversamos. Ele guarda até hoje a miniatura de peixeira e a minúscula bainha de couro, ambas do tamanho de um dedo indicador, que seu vô Antônio lhe deu de presente. O gesto foi um susto para a mãe, dona Marli. Pudera! O menino tinha apenas três anos de idade. Muito depois, já crescido, soube por ela que bastou o avô virar as costas naquele dia para, num alívio, o "brinquedo" ser retirado das mãos do garoto. A relíquia miúda está afiada até hoje.
É daquele momento que o professor de Geografia mapeia seu marco zero pessoal de aproximação e interesse com o universo da cutelaria. O termo vem de cutellus, que significa faca em latim. É o ofício milenar de transformar o pedaço de aço bruto (ferro mais carbono) em facas, adagas, espadas, punhais, sabres, canivetes e tantas lâminas e instrumentos cortantes de vários povos e culturas. Das peças mais simples e tradicionais às de formato único e exclusivo, com requinte, traço e status de arte.
Antes das primeiras vestimentas, o homem já portava uma faca, lembra Yuri. O objeto ajudou na própria evolução da espécie humana. A pedra lascada pontiaguda virou ferramenta de sobrevivência. Era a extensão do braço, equivalia às unhas e garras que os outros animais tinham e ele não. Era para se alimentar, se proteger. Depois digladiaram com ela. Depois o homem passou a fundir e talhar o metal.
Yuri exerce o magistério há três décadas. É seu sustento. Ainda considera a cutelaria que pratica como um hobby, embora a oficina que tenha montado no quintal de casa, no bairro Joaquim Távora, em Fortaleza, já lhe permita criações belíssimas. É um autodidata - que assistia a vídeos pela internet como um observador curioso. Tornou-se um entusiasta e estudioso. Produz conteúdos em suas redes sociais.
Começou a forjar suas primeiras facas, de modo mais regular, a partir de 2006. Fazia algumas eventualmente, “brincava de fazer” para si e para os mais chegados. Foi avançando. Yuri passou a criar e vender sob encomenda. Só no início deste ano buscou a primeira certificação em formato presencial, através de um curso em Pernambuco, com o cuteleiro Luis Carlos Serapião, um dos mais renomados regionalmente.
"A cutelaria tem a ancestralidade e é quase uma alquimia. O que mais curto é essa transformação. Considero realmente mágico", descreve. A gênese de uma faca segue processos físicos, matemáticos, químicos, artísticos - até os terapêuticos - em cada peça. A chapa de aço, um desenho, o corte, o fogo da forja (que pode ir de 200 a mais de 1.000 graus) para expandir as moléculas e deixar o material maleável. O molde é a marretadas manuais sobre uma bigorna ou num martelo hidráulico.
A têmpera, com o metal incandescente mergulhado em óleo, interrompe a bagunça molecular e dá a rigidez de acordo com o uso que a faca terá (“faca para tudo não existe, isso é mito”). Mais marretadas nessa hora. A lâmina aparece após o aço ser desbastado nas lixas mecânicas, que também ajudam na finalização.
(Foto: FÁBIO LIMA)Faca e bainha feitas por Yuri Saboia. Nesta, o cabo é de chifre de cervo
(Foto: FÁBIO LIMA)Yuri registrou o gosto pela cutelaria gravando o braço com uma tatuagem. Na frase em latim, "a sorte favorece a coragem"
(Foto: FÁBIO LIMA)Quicé, tipo de faca pequena, muito usada pelo sertanejo para o dia a dia. É citada até por Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas: "Raspava a rapadura com a quicé, ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto; ou, se não, segurava o naco, rechupando, lambendo".
(Foto: FÁBIO LIMA)Yuri Saboia é professor de Geografia e tem a arte da cutelaria como hobby
(Foto: FÁBIO LIMA)Yuri desfaz a labareda, logo que retira o metal da têmpera, para marretar a peça em seguida
(Foto: FÁBIO LIMA)Faca exposta ao calor do forno, antes de ir para bigorna, depois lixa de desbaste e afiação
(Foto: FÁBIO LIMA)A têmpera é o mergulho do aço no óleo, logo que a peça é retirada do forno. O processo interrompe a bagunça molecular causada pelo calor extremo
(Foto: FÁBIO LIMA)O aço recebe marretadas sobre a bigorna, após sair da têmpera, quando a estrutura metálica está quente e mais maleável
(Foto: FÁBIO LIMA)Yuri Saboia montou sua oficina de cutelaria no quintal de casa, no bairro Joaquim Távora, em Fortaleza
(Foto: FÁBIO LIMA)Algumas das ferramentas da oficina de cutelaria. Arte também lida com couro e madeira
(Foto: FÁBIO LIMA)Projeto da faca começa com um desenho, que ajudará a modelar o corte do metal
(Foto: FÁBIO LIMA)Bigorna é um dos objetos de trabalho mais tradicionais usados pelos cuteleiros
O domínio de técnicas permite a sofisticação de facas banhadas até com café, para escurecer e embelezar o metal. Chapas de aços distintos, quando misturadas e aquecidas e prensadas ao mesmo tempo, formam as lâminas de damasco, que exibem gravuras peculiares, semelhantes a ondulações. São das mais bonitas. A técnica san mai (três camadas, em japonês) expõe o metal com partes inox e rústica na mesma peça.
Os cabos de madeira natural são raros nas customizações. “A madeira trabalha, é viva, incha”, justifica. Os compostos mais usados têm micarta (tramas de tecidos com resina) ou madeiras estabilizadas (também compactadas com resinas). Há empunhaduras de chifre de cervo - que cai e renasce naturalmente no animal -, de material fossilizado, lâminas de meteorito ou de ouro.
Tudo é como um adestramento do metal, do couro, da madeira e da mente criativa. “O cuteleiro é como se fosse uma pessoa equilibrada em duas canoas. Uma canoa é a faca como ferramenta, a outra canoa é a faca como arte”, ensina, parafraseando o gaúcho Rodrigo Sfreddo, um dos profissionais da área mais respeitados no Brasil e no exterior. Há o fio amolado entre ser útil ou ser arma. O estigma de aparecer na maioria dos crimes de ódio, de machismo. Pode ser beleza, mas também é brutalidade.
Não há números de quantos cuteleiros existem no Ceará, segundo ele. Os que estão na atividade, formal ou recreativamente, são pontuais. Dois municípios, Potengi e Jardim, ambos no Cariri, são tradicionais na fabricação, sem o caráter artístico. Neste domingo, 11 de agosto, em João Pessoa, na Paraíba, será realizada a 1ª Mostra de Cutelaria do Nordeste (MCNE). Uma grande exposição de itens originais e produtores da região. Yuri participará.
Ele não sabe se um dia viverá apenas dessa atividade. Mesmo criando facas há 18 anos, ainda se considera “um iniciante”. “Tenho vontade de aprender muito mais para poder ensinar. Talvez com vivências, em que a pessoa venha e aprenda a fazer a própria faca”, projeta.
Mais informações podem ser obtidas por telefone (85-98104.4002, WhatsApp ou Telegram) ou pelas redes sociais Instagram (@ysfacasartesanais e @ysbladesmith) e Facebook (yurisaboia7)
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