Ambrozina, 105 dezembros: sem remédios, com perfumes e suas coca-colas
Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Ambrozina, 105 dezembros: sem remédios, com perfumes e suas coca-colas
Em sua longevidade, Ambrozina Morais retoca suas histórias e cuida da autoestima. Chega a mais um aniversário contemplando a vida e ensinando aos demais sobre o que é finitude
Ambrozina Cassimira de Morais toca a vida. Ouve o “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, esse tal de tempo, tempo, tempo. É mais um dia de sua longevidade, porém especial. Ela agora tem 105 anos, neste 6 de dezembro de 2024. Toda pessoa centenária é especial. Seres inalcançáveis, admiráveis, diferenciados, nos atraem por algum sentimento indescritível que fica, em nós, entre o espanto e a reverência.
Como conseguem? Feito João Marinho Neto, de 112 anos. Cearense de Maranguape, tornou-se o homem mais velho do mundo. Feito dom Edmilson da Cruz, 100 anos, outro fantástico. Bispo emérito de Limoeiro do Norte, entrou no grupo em 3 de outubro último. Ainda celebra o Evangelho e comenta sobre política e direitos humanos.
Viver é o espaço que nos cabe entre limite e limiar, perder e aprender, estar e saudade, saber e apagamento. É o durante, não é sobre começo e fim. Centenários atiçam a curiosidade, mas principalmente expõem a fragilidade alheia. Como chegam tão bem nesse relógio de permanência? Os 100+ nos explicam o que precisamos entender sobre a nossa finitude.
3.682 dias, 27 anos bissextos atravessados, 105 dezembros no caminho, quais histórias estão nas saudades de Ambrozina? Com a comunicação já mais monossilábica (não totalmente), as frases curtas vão guardando segredos, tristezas ou alegrias. Mas a interação permanece sempre que necessária.
Sentada no sofá da sala, olha desconfiada, como se dissesse “quem é esse? por que quer saber de mim?”. Interage, mas se contém. Está elegante, de pernas cruzadas, avisada que viriam lhe perguntar sobre coisas da vida. As netas logo destacam: ela quer sempre estar arrumada, perfumada, aneis, pulseiras, colar, cabelo no coque. “Todo vestido dela precisa ter bolso, para guardar um espelho e o lápis para retocar a sobrancelha”.
A reação é mais natural quando vê álbuns de família, registros de pessoas e momentos importantes. Os outros aniversários, o seu rosto como era, toda a prole. Vai entregando a confiança em fatias, apenas por precaução.
A distância temporal não lhe ajuda a descrever como foi sua infância em Caraúbas, interior do Rio Grande do Norte onde nasceu. Depois de tanto tempo, ainda é cidade miúda, menos de 20 mil habitantes, segundo o Censo Demográfico de 2022. Imagine em 1919...
Ambrozina casou lá também - os familiares não sabem exatamente o ano. Foi a quarta esposa de Marcos Florêncio de Morais. Teriam vivido juntos por quase três décadas - outra incerteza contada. Ela dona de casa, ele agricultor. Tiveram dez filhos, mas seis morreram ainda crianças. Só quatro vingaram: Edivaldo, Eliene. Emília e Mazinha (Elenimar). Sem diferenciar, ainda criou Elza, filha biológica de uma parente próxima.
Vida humilde, difícil, mas resistente. Mostro o rosto dele e lhe pergunto como foi o tempo dos dois. “Ótimo!”, diz, num sorriso convicto. Ela ainda estava na idade 59 quando Marcos morreu, aos 71 anos, em 21 de dezembro de 1978. Ele está ao lado dela numa fotopintura na parede de casa.
Os quatro filhos viventes haviam migrado para o Ceará antes da perda e decidiu-se que Ambrozina, para não ficar só, também viria. Morou vários anos com a filha Mazinha, mas um câncer a levou jovem, aos 58 anos, em 2019. Dois anos e o filho Edivaldo também morreu acometido de câncer.
Ambrozina mora na Parquelândia com a neta e o neto, ambos filhos de Mazinha, o noivo da neta e uma bisneta de 11 anos - filha do neto. São os que lhe dão os cuidados domésticos. Sempre recebe as visitas familiares. Dos 13 netos, um faleceu ano passado, e tem 14 bisnetos - o mais novo tem cinco anos.
A rotina é sem fardos, regalias de uma vida simples, mas digna. Gosta de cantarolar louvores, de ser levada a passeios. É acarinhada pelas horas. Velhice até soa pejorativamente.
É altiva, autônoma para caminhar (sem bengala). Muito saudável. Não frequenta consultório médico, não toma nem remédio para pressão. Não teve Covid, zero alergia. Faz as cinco refeições diárias, sem fastio. Ambrozina tem vitalidade pouco óbvia. Até pouco mais de um ano atrás não precisava de ajuda nem para se banhar.
Operou-se de catarata um tempo atrás, mas lê sem óculos. Dorme por volta das 22h, acorda às 11h. Nunca fumou nem bebeu álcool, mas faz questão diariamente de tomar Coca-Cola. É seu vício conquistado.
Para o entrevistador, demorou a rir, a se soltar. Depois, se permitiu até gargalhar na sessão de fotos. Quando perguntei a nova idade, debochou: "uns 50". Lembraram do aniversário de 99 anos, quando faltou energia, o parabéns foi a luz de velas e lâmpadas de emergência. Pode haver alegria na adversidade.
Ambrozina vai vivendo. Lembrando ou deslembrando, celebrando dezembros. E vivendo seu acordo com o tempo, tempo, tempo.
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