"Diz-me o que sabes e te direi quem és". Dom Manuel Edmilson da Cruz, arcebispo emérito de Limoeiro do Norte, gosta de lançar a frase como referência. Talvez como uma oração. Citou-a três vezes em quase duas horas de entrevista. É criação sua? "Foi Deus que me deu", divide a autoria.
É um dito que usa quando lhe perguntam e se impressionam por sua lucidez e disposição, por ele estar prestes a se tornar um centenário. São 99 anos e cinco meses de uma vida inspiradora. Em 3 de outubro próximo, completará os 100 — como inclusive o fizeram alguns de seus irmãos. Hoje, dom Edmilson é o bispo mais idoso da Igreja Católica no Brasil. "Sim, sou eu", confirma.
O pensamento dele é claro, completo, cheio de lances detalhados de uma memória privilegiada. Um sacerdote que foi voz altiva em defesa de perseguidos, pobres, desamparados. A mente ainda ferve, relembra, se posiciona, mas a voz e o corpo agora estão mais fragilizados.
A cervical se dobra numa escoliose acentuada, as frases se encurtam, às vezes inaudíveis. A bengala, os estudos e as orações lhe dão o suporte. Ele ainda está ali, cruzando o tempo, reforçando convicções, bancando pontos de vista. As ideias que se construíram em um século de vida ainda se sustentam e são consideradas. A limitação é apenas física.
Dom Edmilson ainda gostaria de viajar: "Se eu pudesse, viajaria. Porque gostaria de ver alguma coisa no mundo ainda. E olhe que eu já andei muito". Conviveu com seis dos sete arcebispos de Fortaleza, foi refém num sequestro 30 anos atrás ao lado do amigo dom Aloísio Lorscheider, peitou militares que cercaram uma missa sua em plena ditadura, escreveu, ensinou, ainda aprende.
Hoje, o bispo descansa muito menos do que sua idade recomendaria. Gosta de orar, ler (em mais de um idioma), estudar, ainda celebra missa diariamente, recebe e faz visitas quando pode. Mantém a jovialidade que as idades cronológica e a do corpo lhe permitem. Segue inquieto e produzindo: quer lançar um livro no dia do aniversário.
LEIA MAIS | A poesia de dom Edmilson da Cruz, o atravessador de tempos
O POVO - O que o senhor tem pensado sobre estar prestes a completar 100 anos de vida?
Dom Edmilson da Cruz - Antes de mais nada, vou dizer uma coisa importante: "Diz-me o que sabes e te direi quem és". É o saber verdadeiro. Não é o saber acadêmico somente. Mas você quer saber mais da minha vida? Eu nasci em Aranaú (distrito de Acaraú, a 233,5 km de Fortaleza). Nasci em 1924. Com quatro anos e meio, meu pai me trouxe para a sede do município de Acaraú. Meus primeiros professores foram meu pai (João Batista da Cruz) e minha mãe (Luíza Ferreira da Cruz). Professores e formadores.
OP - Eles eram praticantes na religião?
D.Edmilson - No começo ele (pai) não tinha tanta (devoção), ela (mãe) era mais. Ele era religioso. Era um poeta. Mas fui crescendo, a minha formação era em casa. Tive professoras por pouco tempo. Depois chegou um grupo escolar. Eu atuava como coroinha nas horas livres. Acompanhava o padre nas viagens às capelas.
OP - Quem era o padre?
Dom Edmilson - Monsenhor Sabino de Lima Feijão.
OP - O senhor tinha quantos irmãos?
Dom Edmilson - Lá em casa somos duas famílias de duas irmãs (Vicência e Luíza). Quando morreu a tia Vicência, mãe dos sete primeiros filhos, ela tinha dito à irmã “você vai se casar e cuidar deles (filhos)”.
OP - Sua mãe, Luíza, casou com o marido da irmã, a Vicência, depois que ela morreu. A Vicência teve sete filhos. Sua mãe teve quantos?
Dom Edmilson - Cinco. Eu sou o do meio. Éramos ao mesmo tempo irmãos e primos.
OP - E só o senhor seguiu na vida religiosa?
Dom Edmilson - Nenhum padre nem freira. Mas tive uma irmã que tinha uma coisa extraordinária, a capacidade de aconselhar. Era uma pessoa piedosa, a mais meiga das minhas irmãs. O nome dela era Tereza Carmelita da Cruz Gadelha.
OP - Mas ainda queria saber se o senhor reflete sobre sua condição de ser uma pessoa centenária. O que o senhor pensa sobre chegar aos 100 anos?
Dom Edmilson - Eu penso que é um privilégio que eu não merecia e Deus me concedeu isso.
OP - O senhor acha que não é merecedor?
Dom Edmilson - Acho que não merecia. Mas o Pai do céu me concedeu. É interessante que essa minha velhice não para, no sentido de que ainda tenho mais o que aprender. Cada dia é um estudo e cada dia aprendo. Eu entendo cinco línguas, estou estudando alemão. Eu aprendo depressa.
Do jeito que vou, chego aos 100 no próximo dia 3 de outubro. Minha irmã Vicência completou 100, passou de 100. Meu irmão José morreu faltando dois meses para completar 100. Minha irmã Maria Abigail passou de 100.
OP - O senhor é uma pessoa com 100 anos que ainda está aprendendo e produzindo.
Dom Edmilson - Deus Nosso Senhor me deu essa graça de continuar crescendo. Não existe vaidade. “Diz-me o que sabes e te direi quem és”. A maior parte da minha vida hoje, do meu dia, é oração. Oração silenciosa, oração com os outros, oração da missa, oração na manhã, no meio-dia e na noite. Além disso, a mentalidade aberta para que eu possa aprender e transmitir aos outros. Do jeito que vou, chego aos 100 no próximo dia 3 de outubro. Minha irmã Vicência completou 100, passou de 100. Meu irmão José morreu faltando dois meses para completar 100. Minha irmã Maria Abigail passou de 100.
OP - É uma família de centenários. Seus irmãos e irmãs, algum ainda vivo?
Dom Edmilson - Todos já foram para a eternidade.
OP - Qual é a sua rotina de leitura?
Dom Edmilson - Leio todo santo dia. E leio em várias línguas. Para não perder, senão a gente esquece. Em português, latim. Podia ler em grego, mas perdi o hábito. Espanhol, inglês, italiano. O alemão, tô aprendendo. Não sei se posso dizer que falo, porque certa vez estava na França, falando em francês, aí disse uma frase e me corrigiram. Eu disse um francês lido. Então quer dizer que falar não é a mesma coisa que ler.
OP - O senhor se incomoda quando falam ou lhe pedem para falar sobre sua idade? O senhor se esforçou para chegar aos 100 anos ou foi acontecendo naturalmente?
Dom Edmilson - Não é uma coisa que eu faça força para chegar. Chego porque Papai do céu está mandando. E eu agradeço. Mas eu faço a minha parte também, já que estou nas condições.
OP - O senhor tem seus cuidados próprios? Alimentação no horário, boas horas de sono, medicação?
Dom Edmilson - Eu tenho cuidados. É um dever nosso, de cada um de nós. É um instinto também, de autodefesa da vida. Todo santo dia eu faço massagem no joelho. Isso é importantíssimo. Outra coisa é a massagem na cabeça (faz o gesto), no cabelo. A meu ver isso evita muita coisa. Outra importante é não tomar água logo antes, durante ou logo após as refeições. Durmo muito bem. No momento eu saí do meu esquema — mas vou voltar —, de dormir cedo, antes das dez da noite. Porque estou muito extravagante nos últimos tempos. O ideal são oito horas de trabalho, oito horas de oração e oito horas de sono. Estou fazendo força para voltar a esse esquema. Faz muito bem.
OP - O senhor faz questão de manter essa atividade toda?
Dom Edmilson - Me poupar, eu me poupo, sim. É uma exigência da idade e ao mesmo tempo porque eu estou na situação de doar o trabalho marcado para mim. Estou bem livre neste ponto.
OP - É uma coisa que o senhor se atribui por gostar, por sua vocação?
Dom Edmilson - É uma coisa que eu devo fazer. É um dever.
OP - O senhor um pouco mais jovem, apenas uns 10 anos atrás, era muito mais ativo, ainda muito presente em discussões sobre os direitos humanos, o dia a dia da política, da cidade, da igreja.
Dom Edmilson - Ainda celebro missa todo santo dia (numa capelinha em casa). Já esteve aqui até governador, o Gonzaga Mota. Faz tempo.
OP - O senhor sempre teve posições muito firmes, desde a época da ditadura militar. Naquela época, em algum momento o senhor esteve prestes a ser preso por alguma atitude que tomou?
Dom Edmilson - Quem foi preso foi dom Aloísio Lorscheider (arcebispo de Fortaleza de 1973 a 1995). Não fui preso, mas houve ocasiões de luta contra a ditadura da minha parte. Numa delas, no dia da vitória pelas Eleições Diretas (1984), eu fui celebrar na igreja da Conceição, no Maranhão, estava cheinha de soldados e eu chamei atenção para o fato. “Não precisa desses soldados. Mandem levá-los para o campo de batalha”. Eu disse que aquilo poderia responsabilizar até o presidente da República pela situação. Aí o capitão do Exército disse: “O senhor não falou sobre a palavra de Deus. Mas eu vou atender seu pedido”. Quando eu terminei a missa, eles saíram todos. Quando vou saindo, com um padre ao meu lado, deram a segurança. Um companheiro que ficou celebrando.
OP - Mas quiseram lhe prender?
Dom Edmilson - Eu não sei se quiseram me prender. Só sei que o coronel Liége, quando me chamou para participar de algumas celebrações, me tratava sempre com muito respeito, mas ele fotografava a minha pessoa.
OP - Durante a missa?
Dom Edmilson - Fora da missa. Não sei qual era a intenção dele.
OP - O senhor completou 75 anos de sacerdócio, da primeira ordenação. E foi contemporâneo ou conviveu com seis dos sete arcebispos de Fortaleza. É uma marca sua.
Dom Edmilson - Um conviver que não é estar presente. Quando eu estive uma vez só com dom Antônio de Almeida Lustosa (arcebispo de 1941 a 1963), eu era professor do seminário e ele era uma pessoa muito distinta, trabalhava em pé. Ele era um cientista também. Era muito sábio. Ele não ia a essas reuniões comunitárias, consagrações importantes, ligadas a momentos históricos. Recebia convites, costumava mandar representantes. Eu acho que ele teria feito melhor se tivesse ido.
OP - Era recluso demais?
Dom Edmilson - Não, era um homem muito metódico, muito santo. Comunicava-se muito bem, escritor de primeira qualidade, poeta. Me encontrei com ele em celebrações na capela do Pequeno Grande (Colégio da Imaculada Conceição, no Centro). Nesse tempo eu deveria ter uns 18 anos. Estava no seminário da Prainha. Fiquei admirado a primeira vez. O bispo dom José Tupinambá da Frota (ex-bispo de Sobral), um homem muito inteligente, mas por qualquer coisa ele dava um esbregue danado. Ele dizia que aquilo era para conhecedor do culto de Deus. Na última vez que eu estava celebrando com ele, dom José Tupinambá, a missa foi muito grande. Quando chegou a hora do Agnus Dei, foi uma coisa horrível o esbregue (faz gestos e caretas como se imitasse uma bronca de dom José Tupinambá).
OP - E dom Antônio de Almeida Lustosa era tranquilo?
Dom Edmilson - Exatamente aonde quero chegar, dom Antônio. A primeira vez que participei como seminarista numa missa na capela do Pequeno Grande, na hora caiu uma brasa, ele disse “cuidado para não queimar o tapete”. Se fosse em Sobral teria sido… (dá uma risada comparando com possível atitude de dom José Tupinambá).
OP - Dom Antônio de Almeida Lustosa hoje já é venerável, a um passo da beatificação (que antecede a possibilidade de canonização e o tornaria santo).
Dom Edmilson - Falta tempo ainda. Tem uma caminhada grande aí. Isso vai depender da constatação oficial de um milagre.
OP - Do que o senhor o conheceu, era uma pessoa que tinha o dom de um milagre?
Dom Edmilson - Aquele homem era um santo mesmo.
OP - Que leitura o senhor faz da evolução da diocese de Fortaleza, que completa 170 anos em 2024 (criada em 6 de junho de 1854 pelo papa Pio IX)?
Dom Edmilson - Uma coisa que acho interessante é o que acontece com os bispos. São pessoas humanas, capazes de erros, mas você não ouve falar mal de nenhum bispo. Isso não é um elogio, é um acontecimento. Dou graças a Deus, com humildade. Tudo que vem como luz é coisa muito boa. A luz vem de muitas coisas, a partir de uma primeira, a maior, que é Deus.
OP - O senhor poderia falar um pouco de cada arcebispo que conviveu na Arquidiocese de Fortaleza?
Dom Edmilson - Chamar atenção de uma história. Eu estava no curso de Filosofia no Seminário da Prainha e dom Manoel da Silva Gomes (bispo de 1912 a 1915 e se tornou o primeiro arcebispo, permanecendo até 1941), ao renunciar, resolveu voltar a Salvador. Lá, não tinha mais nenhum amigo vivo e ele resolveu voltar para o Ceará.
OP - Dom José de Medeiros Delgado, o segundo a ocupar o cargo (de 1963 a 1973), o senhor conviveu diretamente?
Dom Edmilson - Convivi muito. Ele era do Maranhão. Foi ele que fundou a Universidade do Maranhão. (De 1966 a 1974, dom Edmilson foi bispo auxiliar de dom João José da Mota e Albuquerque, na arquidiocese de São Luís).
OP - Com dom Aloísio Lorscheider o senhor conviveu 22 anos. Foi o seu maior amigo dentro da igreja?
Dom Edmilson - Esta é uma pergunta difícil. É porque eu me sinto uma pessoa que tem muitos amigos.
OP - O senhor acha que teve uma linha de atuação muito parecida com a dele?
Dom Edmilson - Bom, dom Aloísio era muito competente e me influenciou. Foi uma convivência que não tem nenhum momento de amargura. Nenhum, nenhum. Tem momentos difíceis como aquele sequestro lá do presídio IPPS (Instituto Penal Paulo Sarasate, em 15 de março de 1994, quando ambos estavam entre 13 pessoas que viraram reféns).
OP - Conte mais daquele dia.
Dom Edmilson - Naquele momento, dom Aloísio estava sentado numa poltrona no auditório. Ele ficou amarrado na cadeira por arame farpado. E os sequestradores exigindo a pressa para saírem, garantindo que em tal lugar deixariam dom Aloísio. Um deles disse “se não nos atenderem, se preparem para o churrasco”.
OP - O senhor teve medo da morte naquele momento?
Dom Edmilson - Para falar a verdade, nunca pensei que fosse morrer ali, não. Eu podia estar com medo na hora, mas nunca pensei que fosse morrer. No dia seguinte, quando a Polícia me trouxe, me deixou aqui, minha irmã Terezinha, que era enfermeira, ela mediu minha pressão. Estava 12 por 4.
OP - Foi uma tensão grande, um refém amarrado numa cadeira com arame farpado…
Dom Edmilson - Aquilo fazia a gente duvidar. Mas o que mais admirei em dom Aloísio foi no dia em que ele foi lá onde eles (sequestradores) estavam (de volta ao presídio) para perdoar (na cerimônia do lavapés, no mês seguinte ao sequestro).
OP - E sobre dom Cláudio Hummes (arcebispo de 1996 a 1998)?
Dom Edmilson - Ele era um amigo pessoal. Ele tinha muito respeito a mim e eu a ele. Pouca gente sabe, dom Cláudio esteve em visita à região amazônica. Ele viu toda aquela situação e levou para o santo padre, que depois do Sínodo dos Bispos costumava sempre dar uma orientação apostólica sobre o assunto. No caso, ele não deu. Ele deu foi uma oração, coisa muito bonita, citando a situação da Amazônia. E isso motivou todo esse empenho que está havendo não só no Brasil, mas nas Nações Unidas para a conservação do planeta. Mérito dele.
OP - E de dom José Antônio Aparecido Tosi (de 1999 a 2023), agora arcebispo emérito de Fortaleza? O senhor já deu manifestações de admiração a ele.
Dom Edmilson - Eu nunca esqueço de uma coisa. Ontem ele veio me visitar. Eu tinha chegado aqui fazia pouco tempo, fomos passar uns dias de repouso numa praia. Quando cheguei lá, para minha surpresa, ele pegou minha bagagem para me ajudar. “Não precisa, arcebispo”. Isso é um gesto muito bonito, de humildade de um arcebispo. É um homem muito organizado. As paróquias todas muito pensadas, bem divididas.
OP - Ele é mais reservado.
D.Edmilson - Não é bem isso. Reservado ele é, mas muito prudente, inteligente e preparado. E canta muito bem.
OP - O que o senhor tem de expectativas em relação a dom Gregório Paixão, novo arcebispo de Fortaleza? Ele lhe citou três vezes no discurso de posse (em 15 de dezembro de 2023).
Dom Edmilson - Eu achei aquele gesto tão interessante. Falei com ele, gostei muito dele. Muito simpático e muito competente. A expectativa é daqui pra melhor. Mas cada arcebispo tem o seu mérito próprio.
OP - O senhor lembra da sua infância, de como se interessou pela vida religiosa?
Dom Edmilson - Lembro. É uma vocação, nasceu comigo. Uma vez no meu aniversário lá em casa, eu já era padre, falando sobre esse assunto, fui voltando a idade. No tempo dos estudos médios, científicos, pensava muito em grandeza literária, em ser um grande poeta.
OP - Antes de se tornar padre, de seguir sua vocação, o senhor pensava em alguma profissão?
Dom Edmilson - Vocação não é profissão. Nunca defini uma profissão. Em ser professor era uma coisa que fazia natural, que veio com a vocação. Ensinei muita coisa. Latim, francês, ensinei inglês. Isso eu estava com uns 26 anos.
OP - Voltando mais um pouco ainda, o senhor lembra quando foi a primeira vez que disse que ia ser padre?
Dom Edmilson - No dia que eu fui confirmado como bispo, lá em Sobral, eu disse que minha vocação era ser padre. Se eu nascesse 50 mil vezes, 50 mil vezes queria ser padre. Isso está na minha alma. É uma coisa que eu tenho como um dom de Deus.
OP - Da sua vida religiosa, o senhor tem momentos que considere mais marcantes?
Dom Edmilson - (Pausa) Há vários momentos. Quando a gente ouve falar sobre o caso de um martírio. Aqui no Brasil há muitos casos. Isso me faz pensar como Deus escreve certo por linhas tortas. Tortos somos nós.
OP - Algum caso específico? A maioria das pessoas canonizadas é oriunda de martírios.
Dom Edmilson - Nós estamos hoje (dia da entrevista, 27 de dezembro) comemorando o dia de Santo Estevão. Estevão quer dizer coroado. Ele foi diácono e levava uma vida admirável, ajudando os pobres e fazia milagres. Falaram com alguns homens para dizer que ele tinha blasfemado contra o templo. Ele foi chamado para responder às acusações. Ele disse “os senhores que mataram o Salvador”, aí eles não aguentaram. Levaram-no para fora da cidade e o apedrejaram. Isso é um martírio. É um caso que me impressionou muito. Porque Jesus diz: “Pai, perdoai-vos, porque eles não sabem o que fazem”. Ele tinha uma palavra diferente, “Pai, perdoai-vos, mas não levais em conta esse pecado”. É uma variação, uma espécie de punição.
OP - Dez anos atrás, em entrevista ao O POVO, o senhor falou aqui na sua casa…
Dom Edmilson - A casa não é minha. Não tenho casa nem transporte. E nunca me faltou casa nem transporte (risos).
OP - (Risos) E o senhor disse aqui nesta sala, prestes a completar 90 anos, “estou na minha idade mais feliz da vida”. O que diz da sua idade hoje?
Dom Edmilson - É a idade mais feliz da minha vida. As idades atuais são sempre as mais felizes. A idade é a atual, que não é a mais gostosa.
OP - Por quê?
Dom Edmilson - Porque há coisas que fazem a pessoa sofrer. Os limites físicos. Os limites de comunicação. Não tenho a possibilidade de viajar, por exemplo.
Eu diria que mais do que perceber, eu sinto (os limites da idade). Mas pra mim não é uma limitação. Faz parte da vida. É o curso natural da vida. Pra mim isso é um ponto de referência para a eternidade. Para conhecer que o melhor está chegando.
OP - O senhor ainda sente hoje a vontade de viajar?
Dom Edmilson - Se eu pudesse, viajaria. Porque gostaria de ver alguma coisa no mundo ainda. E olhe que eu já andei muito.
OP - O senhor hoje entende mais os seus limites? É muito mais difícil estar fisicamente num local?
Dom Edmilson - Eu diria que mais do que perceber, eu sinto. Mas pra mim não é uma limitação. Faz parte da vida. É o curso natural da vida. Pra mim isso é um ponto de referência para a eternidade. Para conhecer que o melhor está chegando.
OP - Esse melhor tem um ápice?
Dom Edmilson - É ilimitado.
OP - Tem algum momento que o senhor sofre ou se sente chateado por essa limitação?
Dom Edmilson - Não. Eu acho isso uma consequência da caminhada humana. Isso faz parte da observação da vida, da oração, de ouvir os outros.
Tenho mais de um livro escrito já. E minha parte poética pretendo publicar quando completar 100 anos. Vai se chamar "Ritmo Pascal". Através das poesias, em ritmo de Páscoa, pretendo mostrar o caminhar para a plenitude. São umas 90 poesias.
OP - O que o senhor, que é sempre disposto e jovem nas atitudes, diz sobre o envelhecimento mental, que é muito pior que o físico? Todo mundo deve perguntar e brincar sobre o que o senhor fez para chegar aos 100 anos.
Dom Edmilson - Eu diria que ela não se considere infeliz, são partes do processo da vida. Isso é caminho para uma plenitude de vida.
OP - Felicidade é muito difícil de ser alcançada? É mais elaboração do que conquista?
Dom Edmilson - Depende da pessoa. Há as pessoas que são muito fantasistas, inventam muita coisa, sem fundamento nenhum. Em vez de coisas complexas, são variáveis.
OP - O senhor está com projetos em andamento. Soube de um livro.
Dom Edmilson - Tenho mais de um livro escrito já. E minha parte poética pretendo publicar quando completar 100 anos. Vai se chamar "Ritmo Pascal". Através das poesias, em ritmo de Páscoa, pretendo mostrar o caminhar para a plenitude. São umas 90 poesias.
OP - O senhor se acha uma pessoa fora do padrão, pela memória privilegiada, por ainda estar produzindo nessa idade? Ou estou sendo etarista?
Dom Edmilson - É apenas a ocasião de fazer o que se é pra fazer. É da parte de Deus. Cada um tem o seu privilégio, você também tem o seu. Repito o que disse: “Diz-me o que sabes e te direi quem és”.
OP - Essa frase é sua?
Dom Edmilson - Deus me deu.
OP - O senhor é um dos bispos mais idosos da Igreja Católica no Brasil?
Dom Edmilson - Sou o mais idoso. Sou o decano. O mais velho da Igreja Católica. No Brasil, sim. Dom Antônio Affonso de Miranda chegou a 102 anos (na verdade, morreu antes de completar 102 anos. Nasceu em 14/4/1920, morreu em 11/10/2021, como bispo emérito de Taubaté-SP).
OP - Sobre o papa Francisco, que se mostra sempre com posições e decisões vanguardistas para a linha da Igreja, o que o senhor tem a dizer a respeito desses dez anos de pontificado dele?
Dom Edmilson - É Deus que dirige a Igreja. Mas esse papa tem atitudes que chamam a atenção. Quando ele, por exemplo, se comunica com o povo, quando ele partilha, quando vai visitar prisões, toma um preso nos braços, são gestos que um papa não fazia antes. Ele faz. Mostra muito bem como ele nos transmite a imagem de Jesus Cristo ao fazer essas coisas. E a palavra de Deus é inspirada. Pode notar que aquela palavra tem um conteúdo que é positivo. E mesmo quando é alguma coisa negativa, ele leva para o lado positivo em primeiro lugar. Isso não é muito comum, não. Ele hoje caminha com a bengala, sofre com o joelho. Porque não faz o que eu faço.
OP - É elogiável que o senhor, nessa idade, ainda faz planos, tem projetos.
Dom Edmilson - Mas projetos tranquilos. Quanto a viver, estou nas mãos de Deus.
Dom Edmilson completou 75 anos de vida sacerdotal em 2023. Foi ordenado padre em 5/12/1948 e bispo em 6/11/1966. Desde 1998 é bispo emérito de Limoeiro do Norte — havia assumido a diocese com titular quatro anos antes.
Em dezembro de 2010, o religioso recusou a Comenda Dom Helder Câmara de Direitos Humanos, do Senado Federal. Sua decisão foi em protesto ao aumento salarial de 61,8% aprovado pelos deputados e senadores em causa própria. "Quem assim procedeu não é parlamentar, é para lamentar”, disse à época.
A entrevista foi feita no dia 27 dezembro passado, na sala da casa da Congregação das Irmãs Josefinas, no bairro de Fátima, onde ele mora. Alguns trechos da gravação ficaram inaudíveis com o barulho da rua e a voz baixa de dom Edmilson.
Grandes entrevistas