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Quando um põe tudo a perder
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Quando um põe tudo a perder

"Por essas e outras, percebo que o brilho de qualquer instituição, por maior que seja o investimento em tecnologia e estrutura, pode ser ofuscado pela sombra de um atendimento desumano..."
Tipo Crônica
Imagem de apoio ilustrativo (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Imagem de apoio ilustrativo

Imaginem milhares de reais investidos, tecnologia de ponta aplicada, treinamento apurado de profissionais, e toda uma imagem de credibilidade e eficiência sendo jogados fora pelo mau atendimento de um servidor. Foi o que aconteceu comigo, o "Leito 4".

Foi assim que fui referido durante as 6 horas que permaneci na sala de recuperação cirúrgica de um grande hospital local. Sim, a técnica de enfermagem me chamava de o "Leito 4", ou, para os íntimos do serviço, apenas "o 4".

Há cerca de um mês, comecei a sentir fortes dores abdominais, investigadas inicialmente como suspeita de diverticulite, mas posteriormente identificadas como um cálculo renal.

Correndo risco de septicemia urinária, fui atendido de urgência em um hospital que já foi melhor mas, ainda hoje, mantém boa reputação, além de profissionais atenciosos e gentis. Lá, localizaram o cálculo na junção do ureter esquerdo com a bexiga.

Realizaram a drenagem e colocaram um cateter Duplo J, seguido de uma semana de tratamento medicamentoso em casa.

Na segunda etapa, marcada para a extração endoscópica do cálculo, meu médico escolheu um centro médico de excelência, conhecido por sua infraestrutura e tecnologia avançada. Comecei o jejum às 19h da véspera e a cirurgia foi marcada para às 8h30.

Ao chegar às 5h30, conforme orientação, fui informado de que havia sido reagendada para às 10h. O procedimento correu bem: o cálculo e o cateter Duplo J foram retirados com anestesia raquidiana e sedação. O problema começou na sala de recuperação.

Fui colocado no "Leito 4" e questionei sobre a preparação do apartamento que havia sido solicitado pelo meu médico e autorizado pelo plano de saúde.

A técnica de enfermagem, de forma seca e indiferente, insistiu que "o erro foi do seu médico" e que
eu ficaria ali, sem acesso ao apartamento, até às 20h.

Sem celular para me comunicar com o médico ou o plano, fiquei isolado no "Leito 4", ignorado pela equipe.

Por mais de seis horas, não recebi alimentação, medicação ou sequer um copo d’água. Era como se minha presença ali fosse invisível, reduzida a um número na prancheta.

Durante todo esse tempo, ninguém veio verificar se eu sentia dor ou precisava de algo. A técnica, ao se referir a mim para os colegas ou para o médico do setor, dizia frases como: "O 4 está de ambulatório. Não tem ficha. Ele não tem direito à alimentação".

Era como se eu tivesse deixado de ser uma pessoa, com um nome e uma história, para me tornar apenas um número. Um incômodo número 4.

Quando meu médico chegou às 18h, ficou surpreso com o ocorrido. Confirmou que o pedido de internação em apartamento havia sido feito e questionou os procedimentos.

No entanto, o estrago já estava feito: eu, um paciente renal, havia passado quase 24 horas sem comer, sem beber e sem qualquer assistência adequada.

Por essas e outras, percebo que o brilho de qualquer instituição, por maior que seja o investimento em tecnologia e estrutura, pode ser ofuscado pela sombra de um atendimento desumano.

O que ficou para mim não foi o conforto do hospital, nem a precisão do procedimento cirúrgico. Foi a sensação de ser tratado como um número, um "Leito 4", em vez de alguém digno de atenção e cuidado.

Porque, no fim, não são as máquinas, os painéis decorativos ou as instalações modernas que curam. É o olhar atento, a escuta genuína, o cuidado humano que fazem toda a diferença. Quando isso falta, até o hospital mais avançado perde a essência do que significa cuidar.

E, nesse contraste, fica claro que é o ser humano — e não a máquina — que define o sucesso ou o fracasso de qualquer instituição. Queira Deus eu nunca mais precisar ir para esse hospital que esqueceu a arte de curar.

Foto do Danilo Fontenelle

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