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Clientela sobrevivente é sempre fiel
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Clientela sobrevivente é sempre fiel

"O destino era o restaurante O Dionísio, na fronteira entre Aerolândia e Alto da Balança, território disputado por facções. Chegaram no pingo do meio-dia..."
Foto de apoio ilustrativo. Peixe frito (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Foto de apoio ilustrativo. Peixe frito

Dia desses, aquele amigo – o machista normal, aquela espécie de museu ambulante das décadas passadas – contou uma história engraçada.

Um antigo colega do CPOR o convidou para um almoço, cada um levando os filhos mais novos. Ele levou Marcão, o adolescente contestador. O amigo levou a filha, mesma idade, tímida e que usava seus
fones de ouvido para se proteger do mundo.

Depois de rodarem sem sucesso por restaurantes lotados, decidiram revisitar os tempos de juventude em um lugar “raiz”.

— Vocês vão conhecer a famosa “Faixa de Gaza” — anunciou o machista.

— Simples, mas com comida de verdade! — completou o amigo, rindo.

Os filhos trocaram olhares. "Simplicidade" para eles era sinônimo de wi-fi ruim e cadeiras desconfortáveis.
O destino era o restaurante O Dionísio, na fronteira entre Aerolândia e Alto da Balança, território disputado por facções. Chegaram no pingo do meio-dia.

Dionísio, o dono, surgiu à porta com um sorriso de dentes de ouro e um cabo de peixeira despontando da cintura.

— Fiquem tranquilos. Aqui ninguém mexe com ninguém — garantiu, apontando com o queixo para um sujeito sentado no balcão, com óculos escuros e quase dois metros.  — Qualquer coisa, o Miúdo tá ali.

Miúdo, um homem enorme, sentado num banco alto e com óculos escuros mesmo na penumbra, maneou a cabeça. Deu tapinhas carinhosos no volume que carregava na cintura, como quem diz: “Não se preocupe, eu resolvo".

— Ele só anda com a Lurdinha — explicou Dionísio, rindo.

Marcão ergueu as sobrancelhas.

— Depois pesquise quem foi Tenório Cavalcante. Lurdinha é em homenagem a ele — sussurrou o amigo do machista, de um jeito que parecia ora conspiratório, ora orgulhoso, como quem compartilha um segredo de Estado.

Dionísio era só contentamento. E com razão – há quarenta anos, ninguém ali saía insatisfeito. Ou pelo menos ninguém era doido de reclamar. O cardápio, rabiscado na parede com giz, listava bife de boi, buchada, panelada, peixe e fígado. Mas o dono logo avisou: — Só não tem fígado.

— Qual é o peixe? — perguntou a menina.

— De água salgada mesmo — respondeu Dionísio, seco, mordendo a ponta da caneta.

— Vamos querer um de cada — disse o amigo do machista, já querendo evitar perguntas que pudessem prolongar a troca de olhares letais entre Dionísio e seus jovens clientes.

A comida veio simples, farta e deliciosa, surpreendendo até os adolescentes, que se renderam às histórias infladas dos pais sobre uma juventude cheia de aventuras, amores proibidos e noites insones. Eles exageravam, claro, mas os filhos ouviram com algo próximo da admiração. Ou talvez fosse só fome.

Tudo corria bem até chegar o momento da sobremesa e do pagamento da conta. Dionísio trouxe à mesa um vidro de boca larga, fechado por uma tampa metálica que parecia ter sobrevivido a um bombardeio. Dentro, uma solitária e simpática rapadura.

— Essa é a “tradicional rapadura comunitária itinerante!” — anunciou o Restaurateur, cheio de orgulho.

— Ela faz sucesso aqui desde sempre. Quem quiser, pode pegar um pedaço.

Os filhos congelaram. A menina sussurrou, horrorizada:

— Isso é sério?

— Claro que é sério! É uma tradição! — respondeu o machista normal, contendo riso.

— Uma tradição de infecção intestinal? — devolveu Marcão.

Dionísio, sem se abalar, quebrou a rapadura com a peixeira e serviu um pedaço generoso a todos, usando a mesma mão com que minutos antes pegara dinheiro, passara troco, trouxera os pratos e apertara mãos. Era um homem multitarefa.

— Vocês tiveram sorte. Antigamente ele quebrava era no dente — sussurrou o amigo.

Na despedida, Dionísio ainda apertou a mão de cada um com um sorriso dourado e deixou um aviso:

— Voltem sempre, hein? Fidelidade da clientela é tudo.

Foto do Danilo Fontenelle

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