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No silêncio da piscina e da alma
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

No silêncio da piscina e da alma

Perdi o sono e desci para buscar ar fresco. Fui dar uma volta perto da piscina. Logo senti o cheiro forte de álcool misturado com cloro quando o vi, imóvel, com a garrafa pendendo na mão
Tipo Crônica
No silêncio da piscina e da alma (Foto: Reprodução/Freepik/rawpixel.com)
Foto: Reprodução/Freepik/rawpixel.com No silêncio da piscina e da alma

Toda noite, por volta das duas da manhã, ele estava lá. Sentado em uma espreguiçadeira na área da piscina, no escuro, com uma garrafa na mão e o olhar perdido no reflexo trêmulo da água. O farfalhar das palmeiras cortava o silêncio da madrugada, misturando-se ao som discreto da água filtrando na piscina. O mundo dormia, mas ele não.

Para o grupo do WhatsApp do condomínio, ele era apenas "o bêbado do 302". O "fantasma de pijama" que atormentava o sono alheio com seu canto desafinado, ecoando entre os prédios como uma lembrança incômoda que ninguém queria ter. O cheiro de álcool, forte e ácido, muitas vezes impregnava o elevador pela manhã, denunciando sua presença.

Sempre as mesmas duas músicas. Uma valsa antiga, romântica, e uma canção infantil, doce, quase um sussurro. Muitos comentavam:

— O álcool já fritou o cérebro dele. Só pode.

Eu mesmo já ri dele. Já revirei os olhos quando ouvi seu riso rouco ou seu canto arrastado. Era fácil julgá-lo. Todos julgavam. Até aquela noite.

Perdi o sono e desci para buscar ar fresco. Fui dar uma volta perto da piscina. Logo senti o cheiro forte de álcool misturado com cloro quando o vi, imóvel, com a garrafa pendendo na mão. Pensei em voltar, mas ele me viu antes. Fez um gesto vago com a cabeça, como quem diz "tanto faz", e voltou a encarar a água. Fiquei.

Sentei-me na espreguiçadeira ao lado. O silêncio era denso, cortado apenas pelo zumbido distante de postes de luz e o barulho ocasional de um carro longe.

— Sabe por que fico aqui? — murmurou, sem me olhar.

Neguei com a cabeça.

— Porque, se eu ficar lá em cima, penso em pular.

Engoli seco. A água parecia mais parada. Tentei encontrar palavras, mas ele continuou:

— Elas morreram num sábado. Voltavam de uma viagem rápida pra visitar minha sogra. Um caminhão... — pausa longa, amarga — ... atravessou a pista. Minha esposa e minha filha. Acabou. De uma hora pra outra.

Falava sem drama. Só com um cansaço de afogar montanhas.

— O quarto da minha filha ainda tem os pôsteres, os livros que ela nunca terminou. O perfume dela parece estar lá às vezes... ou talvez seja só minha cabeça. A cozinha ainda tem a xícara preferida da minha esposa. E eu... eu ainda ouço a risada dela quando vejo a cadeira da sala.

Virou o resto da bebida de um gole só, como se quisesse apagar as lembranças que acabara de reviver. Depois, começou a cantar baixinho:

"Se você soubesse o quanto eu te esperei
Naquela noite..."

A voz falhava, arranhada pelo álcool e pelo tempo. O som ecoava suave entre os prédios, um sussurro perdido na noite.

— Foi a música do nosso casamento — disse, com um sorriso fraco. — Dancei com ela até o salão ficar vazio. Ela ria porque eu pisava no pé dela o tempo todo.

Fechou os olhos por um instante, tentando voltar para aquela noite. Quando os abriu, sussurrou de novo:
"Dorme, meu bem, que a noite já vem...".

Minha garganta apertou.

— Minha filha só dormia se eu cantasse isso. Toda noite. Eu errava a letra, inventava uns versos, e ela ria. Deus, como ela ria.

Ele me olhou pela primeira vez, olhos fundos, vermelhos e exaustos.

— Canto porque... se eu parar... talvez eu esqueça a voz delas.

Nos dias seguintes, comecei a observá-lo de longe. Durante o dia, ele era invisível. Um homem comum, que andava pelos corredores com passos arrastados e olhar baixo. No mercadinho do bairro, segurava um pacote de café e evitava conversas. No elevador, fitava o chão, indiferente aos cumprimentos apressados dos vizinhos. Mas à noite... voltava à piscina, ao escuro, ao canto, ao profundo da sua dor.

Na manhã seguinte ao nosso encontro, o grupo do condomínio explodiu com mais uma piada sobre o "bêbado da piscina". Não ri. E, pela primeira vez, fiquei me perguntando quantas histórias como a dele a gente escolhe não saber, só porque é mais fácil rir do que entender.

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