
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Quando comecei a escrever crônicas, por sugestão de um desses amigos inconsequentes que a gente tem, tive muito receio de que meu modo jurídico prevalecesse e o texto se tornasse algo pedante e distante do leitor.
Então li bastante sobre o gênero, arrisquei um bocado e até me inscrevi num curso presencial, em São Paulo, sobre escrita criativa.
Aproveitei um restinho de férias e fui passar dois dias numa sala improvisada, em um prédio antigo de consultórios, perto da região dos hospitais da capital paulista. As aulas eram no sábado, o dia inteiro, e no domingo pela manhã.
Fiquei num hotel simples nas proximidades e dava para ir a pé, sem problemas — passando por uma praça com seus moradores de rua e atravessando às pressas as avenidas sempre lotadas.
A turma foi chegando aos poucos e se acomodando nas cadeiras simples. Era composta apenas por mulheres. Quinze delas. E eu. Fui olhado com estranheza. Um homem? Ali? Entre donas de pequenas empresas com problemas de comunicação com clientes, estudantes de publicidade desejosas de melhorar seus textos, escritoras iniciantes e algumas em recomeço de vida, após separações um tanto traumáticas, nos apresentamos em roda.
A professora, com cabelos precocemente brancos e um xale esvoaçante que varria o chão como se fosse capa de guru literária, havia sido jornalista e articulista de revistas nacionais. Agora se dedicava a dar aulas em sua própria empresa, tendo o marido como ajudante, motorista e guarda-costas.
Ele me observava com certa desconfiança. Talvez imaginasse que eu quisesse roubar as pequenas pranchetas e lápis que nos entregaram, ou fugir com o bolo que ele caprichosamente cortara em fatias isonômicas, posicionado ao lado do café num cantinho improvisado como apoio culinário.
Entre teorias e exemplos em PowerPoint, a professora nos estimulava a encontrar a própria voz, escavando sentimentos e derramando memórias. Fizemos alguns exercícios, e eu me lancei num miniconto sobre a avareza de um avô para com seu neto, usando o bolo servido como gatilho para uma memória ficcional.
Acreditaram que a história fosse verdadeira — e aí veio o mais inusitado. Talvez na tentativa de me confortar, a professora — convencida de que eu era a criança privada de afeto e sobremesa — apressou-se em dizer que entendia bem o que eu teria passado, porque era neta de nordestinos e que “esse pessoal é assim mesmo, muito bruto”.
Ao saber que a história era fictícia, ela tentou se justificar. Em seguida, passou a um misto de desculpas e aquele elogio clássico para salvar a situação: “escrita envolvente”, seguido pela retomada meio cambaleante da aula com exemplos de literatura regional fantástica e outros gêneros. Mas o constrangimento já era palpável.
No intervalo para o almoço, as colegas se solidarizaram. Todas comentavam serem “amigas de nordestinos”, com menções esparsas a férias exóticas entre coqueiros e mares quentes. Aparentemente, não tinham muita noção das distâncias entre Salvador e Fortaleza, além de ligeiras confusões entre as capitais do Norte e Nordeste — o que mostra que aulas de geografia ainda fazem falta.
Pelo resto do sábado e do domingo, o marido, sempre de prontidão, me oferecia insistentemente bolo, café e água, como se eu fosse algum retirante das letras.
No fim do domingo, já com a última fatia de bolo devidamente oferecida (e recusada por pura birra regional), saí da sala com um caderninho cheio de exercícios, um texto lido com comoção indevida, e a certeza de que a crônica é mesmo isso: um jeito disfarçado de falar sério brincando — ou de brincar falando sério.
Aquela experiência me ensinou duas coisas:
Primeiro, que o preconceito às vezes se disfarça de elogio bem-intencionado, com cobertura de glacê.
E segundo, que quando dizem “todo mundo tem um pouco de nordestino no coração”, normalmente é porque acham que o coração do nordestino é algum lugar exótico, desses que cabem em clipes turísticos e músicas de verão.
Mas tudo bem. A gente ouve, escreve, engole seco (ou com bolo) — e segue. Porque, entre a sala, o texto e o mundo, é da nossa voz — com sotaque e tudo — que vem a melhor lição.
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