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O comércio das dores renascidas
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O comércio das dores renascidas

Confesso que a primeira coisa que imaginei ao ouvir falar de bebês reborn foi de que tudo não passava de uma grande campanha de marketing de divulgação de um novo produto
Tipo Crônica
bebê reborn na maternidade reborn (Foto: Reprodução/Instagram/ Alana Babys)
Foto: Reprodução/Instagram/ Alana Babys bebê reborn na maternidade reborn

Ela embalava o bebê com doçura, murmurando uma canção. Só que o bebê não chorava. Nem respirava. Porque era apenas um boneco. Olhando aquilo, lembrei-me de um conselho antigo: seja gentil com todos, pois nunca sabemos as dores que carregam.

Isso me veio à mente por causa de um estranho e inquietante fenômeno que pode ser enquadrado em várias categorias e não sabemos como nos posicionarmos ou o que fazer, se é que temos que fazer uma coisa ou outra. Estou falando dos bebês reborn.

Os bebês reborn são bonecas ou bonecos ultrarrealistas que são cuidadosamente esculpidos, pintados e montados para parecerem bebês reais. Eles são chamados de "reborn" (renascidos) porque são geralmente criados a partir de kits de bonecas comuns que são transformados por artistas especializados. Cada detalhe é meticulosamente criado: pele, cabelos, até respiração e sons fazem com que o boneco assuma uma incrível semelhança com bebês humanos.

Confesso que a primeira coisa que imaginei ao ouvir falar de bebês reborn foi de que tudo não passava de uma grande campanha de marketing de divulgação de um novo produto. Afinal de contas, nada mais eficiente que a massificação de sua imagem através de algo ambíguo e que gere comentários ou, como se diz atualmente, nada como uma boa viralização.

Pode-se dizer que brincar de boneca é uma atitude normal, assim como adultos colecionam carrinhos e jogam videogame, e várias pessoas se dizem pais e mães de pets. Não deixa de ser uma comparação interessante, mas existe a diferença de que os colecionadores sabem que objetos são objetos e os tutores compreendem que convivem com um ser vivo de outra espécie, com características próprias e que merece cuidados até sua partida.

O que se tem visto são vídeos em que pessoas se esmeram com aparente sinceridade em chás de revelação, partos simulados com direito a certidão de nascimento e caderneta de vacinação, além de registros da rotina, banhos e alimentação, hora do soninho, sem falar de passeios, festas e aniversários com a presença de outros reborns e seus dedicados pais.

Alguns terapeutas veem nisso um reflexo de controle narcísico, um sintoma da desumanização moderna e os bebês funcionariam como objetos transicionais, reflexo de um adoecimento sistêmico.

Afinal de contas, o bebê boneco não tem querer. Você é quem decide tudo, e ele aceita sem contestação. E tudo é feito sem choro, resistência, reclamação ou fraldas sujas. O bebê reborn também não fica doente nem acorda de madrugada. Não tem alergias nem engole moedas ou coloca milho nas narinas. Ele é super bem-comportado. Não chora, não exige, não desafia nem frustra ou decepciona.

Assim, é mais fácil amar alguém dessa maneira, no vazio existencial que nos resta e consome, envolvido pelo temor do imprevisível e do doloroso das relações humanas reais.

Outros já identificam que os reborns podem ser representações de um afeto que faltou, de uma dor que ainda não foi nomeada ou de uma ausência que ninguém ajudou a cuidar. Ou, quem sabe, sejam materializações do grito ainda mudo de quem perdeu um filho, ou de quem carrega fendas na alma da criança negligenciada que um dia foi.

Talvez alguém esteja desesperadamente tentando colar os cacos da sua própria infância. Tudo seria uma maneira lúdica de substituição inconsciente de como deveria ter sido amada e protegida, mas o destino não deixou. Só que substituições não curam. Apenas adiam o enfrentamento de nossos fantasmas. Outros percebem esse fenômeno como sintomas da epidemia de solidão e transtornos mentais de uma civilização em risco de colapso.

Seja como for, todos concordam: a vida real não é feita de afetos programados nem de convivências impostas, mas pelas opções de ir e ficar. E que amar não é dominar nem controlar fantasiosamente o outro, mas aceitá-lo com suas imperfeições. Obviamente, quem ultrapassa tais limites, merece ser acolhido em sua vulnerabilidade, mas também ser chamado à realidade e encaminhado à terapia.

Queira Deus que tudo seja apenas uma campanha de marketing. Porque, na vida real, feridas não se curam com bonecos, e afetos não se programam — eles nascem entre corações e almas, na imperfeição e na liberdade.

Foto do Danilo Fontenelle

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