Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Alguns dizem que só vivemos uma vez. Quem disse isso, nunca prestou atenção nas pequenas mortes que nos espreitam nos corredores da rotina.
Morremos um pouco quando desistimos de um sonho antigo, quando deixamos de amar quem, um dia, juramos nunca esquecer. Quando viramos a esquina sem olhar para trás, mesmo sabendo que algo dentro de nós ficou ali, parado, acenando no novo vazio.
A morte não é só um evento final — ela se insinua em silêncios, em decisões, em bifurcações. Morremos quando renunciamos a uma parte de quem éramos. Ou poderíamos ser. Mas também morremos — e às vezes de forma mais intensa — quando nos libertamos do que nos paralisava: um medo ancestral, um trauma herdado, uma expectativa que nunca foi nossa.
“Morri aos 34”, me contou uma amiga. “Quando percebi que aquele casamento que parecia seguro era, na verdade, uma cela acolchoada. Me enterrei em silêncio durante anos. Um dia, fiz as malas e saí. Chorei no carro. No rádio, tocava uma música de infância. Eu renasci no farol seguinte”.
Um amigo, por outro lado, morreu devagar. “Foi quando deixei de desenhar”, disse. “Tinha 19 anos e um talento que todos elogiavam. Mas achei que precisava ser ‘responsável’. Entrei num escritório e só fui perceber que aquela escolha tinha me matado 20 anos depois, quando olhei a alma e as mãos vazias”.
Há mortes que são luto. Outras, alívio. E há aquelas que chegam como festa.
“Morri de medo quando pedi demissão”, me contou uma conhecida. “Mas foi uma morte linda. Brindei sozinha, numa lanchonete barata, com uma fatia de bolo e um cafezinho. Nunca tinha sentido tanto gosto de vida”.
E tem aquelas mortes sutis, quase imperceptíveis, como a que nos livra da obrigação de agradar a todos. Como a que sepulta uma crença limitante. Como a que encerra um ciclo de autossabotagem.
“Morri de cansaço de ser quem esperavam que eu fosse”, disse um amigo. “Comecei a dizer ‘não’. O silêncio depois do ‘não’ foi assustador. Mas depois dele veio a paz”.
Também morremos de coisas que nunca chegaram a florescer. Como quando abrimos mão de ser quem éramos aos sete anos — sonhadores, curiosos, indomados — para caber na forma que os adultos queriam. Há quem tenha enterrado a própria espontaneidade no fundo de um recreio. Há mortes que acontecem cedo demais, antes mesmo de sabermos que estávamos vivos.
E há mortes que não escolhemos. Uma demissão inesperada, o fim abrupto de uma amizade, um diagnóstico que muda tudo. Nessas, o luto vem acompanhado de raiva, negação, confusão. Mas mesmo nessas, um dia, surge o broto — pequeno, resistente — de uma nova versão de si. A vida insiste em nascer, mesmo nas fendas de nossas armaduras.
A rigor, somos cadáveres ambulantes de nós mesmos. Uma espécie de vivo-morto perambulando pela vida. Não procuramos cérebros nem contaminar ninguém, mas simplesmente viver morrendo da melhor maneira possível.
Não somos quem fomos ontem. Também não seremos os mesmos amanhã. A cada decisão, deixamos vestígios pelo caminho — pegadas de vidas e mortes passadas, de existências possíveis e escolhas que nos marcam — algumas leves, outras profundas.
Todas deixam cicatrizes. E, no fim, são elas que nos moldam. Talvez o segredo seja esse: não temer as mortes inevitáveis, mas acolher os nascimentos que elas trazem consigo.
Somos múltiplos. Não somos uma só biografia encomendada pelo destino. Somos capítulos que se escrevem e se apagam, que se contradizem, que às vezes se repetem em espiral. E às vezes nos surpreendem com mudanças de enredo, cenários e personagens.
A verdade é que morremos muitas vezes — e renascemos outras tantas. Cada dia é um convite: para deixar partir o que já não serve, para sepultar o que dói, para celebrar o que se transforma. Uma nova morte pode ser o início exato de uma nova vida. E talvez, no fundo, viver seja isso: morrer e renascer em segredo, um pouco a cada amanhecer.
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