Logo O POVO+
Karatê e a tradição da paz interior (e alguns molares no exterior)
Comentar
Foto de Danilo Fontenelle
clique para exibir bio do colunista

Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Karatê e a tradição da paz interior (e alguns molares no exterior)

A grande maioria das práticas desenvolve a capacidade de combate pelo controle mental e espiritual, em substituição ao enfrentamento propriamente dito
Comentar
De John Gilbert Avildsen,
Foto: Divulgação/ Columbia Pictures De John Gilbert Avildsen, "Karatê Kid" (1984) foi uma das maiores bilheterias do seu ano de lançamento e ganhou uma série de três filmes, além de um remake

Há muitos anos conheci o karatê e, mesmo com muitas paradas e recomeços, cheguei à faixa preta (4ºDan, respeite as caras, fazendo o favor).

O interessante é que todo mundo da minha geração que pratica outros esportes não enfrenta qualquer questionamento. Assim, amigos nadam, correm, pedalam e está tudo certo. Ninguém acha nada demais. Mas, quando digo que faço karatê, geralmente me vêm com um “Ainda?”.

Como, “ainda”? E esporte tem algum limite proibitivo de idade? Ninguém pergunta a um corredor se ele “ainda” corre, nem fica surpreso de alguém com mais de 60 “ainda” nadar. Mas karatê? “Ihh, isso é muito estranho”.

Talvez pensem que as lutas marciais causam mais lesões do que outros esportes — ou que a era do Kung Fu e do Karatê Kid já passou. O fato é que o karatê, judô, jiu-jítsu, boxe e qualquer outro esporte de combate pode — e deve — ser praticado por qualquer pessoa, sem limite de idade.

Hoje em dia, usamos protetores corporais, e os treinos são ministrados por professores de educação física especializados, o que garante muito mais segurança.

E tranquilizem-se: as artes marciais buscam muito mais o aprimoramento mental, espiritual e ético. Na verdade, quanto mais você pratica, mais calmo e pacífico se torna. Sim, podemos machucar algum agressor, mas preferimos não o fazer e cultivar a paz — a não ser que não tenha jeito mesmo.

A grande maioria das práticas desenvolve a capacidade de combate pelo controle mental e espiritual, em substituição ao enfrentamento propriamente dito.

Pra dizer a verdade, isso tudo tem fomentado dúvidas sobre até que ponto o karatê está perdendo sua marcialidade em prol de uma esportividade olímpica cheia de regras e limites.

Um grupo de amigos karatecas se reuniu e propôs treinos, por assim dizer, “mais soltos”, em uma espécie de resgate das origens. Pena que foi logo na semana em que tive que viajar.

Moisés, um coroa de quase 70 anos e cuja faixa já perdeu a cor há séculos, comandava a dissidência — e era o mais animado no grupo. Não faltaram mensagens reveladoras, como:

“Sim, para tirar manchas de sangue do kimono, use imediatamente água gelada e bicarbonato”.

“Favor serem generosos nas pastas de fixação. Chapas, pontes e implantes devem ser checados antes das lutas”.

“Toucas de cetim só são permitidas para quem comprovar tratamentos capilares recentes”.

“Não realizamos filmagens ou tiramos fotos simuladas. E não cola nenhuma desculpa de ser ‘apenas para a posteridade’, seu bando de amostrados. Favor não insistir”.

E: “Ao fim do treino foram encontrados um canino, dois molares e uma sobrancelha esquerda. Os interessados devem procurar a recepção”.

O mestre continuava solícito em prestar todas as informações sobre equipamentos.

“Quanto à marca do spray de pimenta e bastão elétrico usados na separação de quem não respeitou o comando de parar nas lutas, levarei o contato do representante na sexta. Ele também fornece zarabatanas com dardos calmantes e disse que as camisas de força ainda estão na promoção da Black Friday”.

Fiquei feliz pela visita dos bombeiros e checagem dos itens de segurança e de socorro médico.

“Informamos, para nossa felicidade e alívio, que o dojo recebeu oficialmente a visita técnica do Corpo de Bombeiros, que gentilmente pediu para não treinarmos mais com fogo real nas demonstrações. O desfibrilador já está com nova carga após o uso de hoje”.

Mas o que me deixou realmente animado foi o lembrete final sobre os itens de treinamento. Uma verdadeira fusão entre artes marciais orientais e instrumentos de cerco medieval.

“Lembre-se que no próximo treino usaremos porretes, maças, bestas e arame farpado tripla fase. Uso de armaduras ou capacetes é opcional”.

Confesso que fiquei ansioso para voltar. Nada como aquela paz que só o karatê proporciona. Só preciso terminar o curso online de manejo de tacape, com certificação internacional e tudo. A paz interior pode esperar mais uns dias. OSS!

Foto do Danilo Fontenelle

A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?