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Justiça é cega, mas tem olhos de gente
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Justiça é cega, mas tem olhos de gente

A importância de juízes que humanizam a justiça, priorizando a escuta e a compreensão das pessoas em vez da aplicação fria da lei
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Imagem ilustrativa de apoio. Talvez o mundo não precise de juízes perfeitos. Só de juízes que lembrem que ninguém é. Nem mesmo eles
 (Foto: Foto: Reprodução/TJCE)
Foto: Foto: Reprodução/TJCE Imagem ilustrativa de apoio. Talvez o mundo não precise de juízes perfeitos. Só de juízes que lembrem que ninguém é. Nem mesmo eles

Todas as profissões cultivam, querendo ou não, uma certa mítica. Tipo imaginar que os médicos sabem identificar doenças de primeira — e que o diagnóstico é mais ciência infalível do que jogo de tentativa e erro.

Alguns advogados gostam de manter a aura de que são mais espertos que técnicos e que, por sua astúcia e seus relacionamentos palacianos, conseguem verter leite de pedra. E cobram caro por isso.

Outro mito bastante difundido é o de que juízes sabem de tudo — e um pouco mais — o tempo todo. Infalíveis, inquestionáveis, a aparência do bom juiz seria a de alguém impassível, técnico e inabalável.

Alguém que, diante de um processo, ignora lágrimas, titubeios e suspiros — como se a vida coubesse dobrada e grampeada dentro de um artigo do Código Penal.

Mas eu tenho uma outra teoria: o melhor juiz é aquele que se permite esquentar um pouco a frieza da toga. Que escuta, hesita, revê. Que se lembra que, por trás de todo “réu”, existe um ser humano mais cheio de “e se” do que de certezas.

Lá nos Estados Unidos, tem um senhor que virou herói justamente por isso. Nome de juiz de cinema: Frank Caprio.

Sentado num tribunal de trânsito em Rhode Island, ele ouve histórias mais do que infrações. Já perdoou a multa de uma mãe solteira que se atrasou porque o filho não queria acordar. Já sorriu diante de um idoso, veterano de guerra, que levava o filho — também idoso — para tratamento.

Frank não julga carros mal estacionados — ele julga vidas momentaneamente fora de lugar. E o mais bonito: quase sempre com um sorriso. Os vídeos correm o mundo e, cá entre nós, deveriam ser matéria obrigatória nas faculdades de Direito.

Mas não precisamos atravessar oceanos para encontrar juízes que enxergam o humano antes do número do processo.

Aqui mesmo, no calor de Sergipe, tem um homem chamado Kleiton Ferreira, juiz federal que julga pedidos de aposentadoria e benefícios previdenciários — a maioria de trabalhadores rurais. Em vez de se esconder atrás de sentenças empoladas, ele se aproxima. Usa palavras simples, às vezes até poesia. Tem fala mansa, mas firme — como quem entende que justiça não se grita, se constrói.

Durante as audiências, busca intimidade com as partes. Pergunta da vida, dos sonhos, das esperanças. Indaga também sobre as provas e os requisitos legais, mas o faz com doçura — como quem realmente deseja compreender os silêncios calados pelo destino, as lágrimas emudecidas, as secas suportadas, os verões vividos, e as histórias que ardem na pele daquelas mãos calejadas à sua frente.

E é isso. Talvez o bom juiz seja aquele que não romantiza a lei, mas também não finge que a vida é preto no branco. Ele sabe que, às vezes, o que separa o réu do cidadão exemplar é só uma perda, uma ausência, uma infância que não deu certo, um impulso, um desequilíbrio, uma fragilidade momentânea. E mesmo quando aplica a pena, parece fazer isso com pesar — não com prazer. Muito menos como vingança.

É esse tipo de juiz que me faz acreditar que o Direito pode ser ponte e janela — e não muralha. Pode ser mão estendida, e não dedo em riste. Que pode ser uma varanda por onde se enxerga o outro, e não uma torre onde só se vê de cima. Que pode ser estrada de mão dupla, e não beco sem retorno. Que pode ser chão firme, mas onde raízes humanas ainda possam brotar.

Quem dera mais juízes adotassem o gesto da escuta autêntica e sensível, e não apenas o peso do martelo.
Quem dera os códigos viessem com rodapés explicando que gente não é fórmula nem episódio — é história em construção.

Talvez o mundo não precise de juízes perfeitos. Só de juízes que lembrem que ninguém é. Nem mesmo eles.

Foto do Danilo Fontenelle

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