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Os caminhos sonoros do senhor
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Os caminhos sonoros do senhor

Ora, se eu quero calma, espero receber um vale-férias numa praia deserta — e não horas em um engarrafamento com o sol no pingo do meio-dia
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Imagem ilustrativa de apoio de uma padaria (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Imagem ilustrativa de apoio de uma padaria

Dizem que, quanto mais a gente implica com uma coisa, mais versões dela aparecem — como que lições enviadas por um Deus um tanto quanto confuso.

Digo isso com todo respeito, mas já ouvi gente agradecendo por ter pedido mais calma... e Deus, aparentemente, ter enviado um enxame de circunstâncias irritantes para a pessoa aprender a ter calma. Onde já se viu um negócio desses?

Ora, se eu quero calma, espero receber um vale-férias numa praia deserta — e não horas em um engarrafamento com o sol no pingo do meio-dia.

O fato é que ontem tive uma dessas provas dos caminhos tortos por onde Deus escreve certo. Ou, pelo menos, de sua infinita ironia e onipresente senso de humor.

De uns tempos para cá, ando ficando ainda mais implicante com determinados sons que as pessoas fazem. Será que só sou eu? Será alguma perseguição onomatopaica?

O fato é que, dentre outras peculiaridades, existem alguns sons que me perturbam — mesmo que as pessoas emissoras não tenham qualquer intenção.

Daí, caí na besteira de pedir mais paciência com essas coisas. Logo cedo, me deparei com um “sfisch, sfisch, sfiiiiiiishh” na padaria.

Tem gente que anda arrastando os pés, principalmente as mulheres que insistem em usar rasteirinhas. Não bastasse a desconstrução de qualquer traje ou postura com as tais chinelinhas metidas a besta, muitas usuárias ainda fazem questão de esfregar os pés no chão — meio que patinando no seco.

É quase como se quisessem dar rasteiras em minhocas. Aí fica um tal de “sfisch, sfisch, sfisch” insuportável.

No meu caso, a padaria era pequena, e a senhora rastejante percorria o ambiente como se estivesse varrendo rastros na Caatinga.

Meio que para equilibrar o mundo sonoro, logo após o almoço, quando me preparava para um leve cochilo, apareceu o representante flamengo vindo do andar de cima.

A vizinha deve ter voltado da Holanda com trajes típicos completos — provavelmente com tamancos entalhados por artesãos reclusos — porque ela se esmerou muito em usá-los sem pudor sonoro algum.
Assim, tive o prazer de me aproximar auditivamente dos costumes de Roterdã e adjacências.

E fui brindado com uma sequência misteriosa de “toc-toc-toc-toc” ligeirinho pra lá e pra cá, como alguém correndo para ver o que Van Gogh estava querendo fazer ao amolar a faca. Quem é que dá corridinhas... de tamanco? Por caridade!

Logo depois, ao entrar no elevador, lá estava uma criatura que lembra muito o gênero humano. Até as pegadas são parecidas. Mas, pelo comportamento, estava mais perto de uma espécie de bovino acústico.

Sim, o diabo do adolescente — filho da sapateadora — ao invés de estar com a cara afundada no celular ou silentemente soturno, chupando um plástico esfumaçado, como é de se esperar, estava em um “nheco, nheco, nheco” explícito.

Eu nem sabia que ainda se vendia chiclete. Nem, muito menos, que adolescentes gostassem disso. O nechonhequismo só deu espaço para um prolongado e inesperado: “suuuufiish...” Pois é.

Uma gigantesca bola se fez presente, ameaçando estourar na cara do artista. Foi assoprada com esmero. E com a sofreguidão de quem tem apenas alguns minutos para apresentar sua performance.

Garanto que, se fosse no sinal, arrancaria aplausos e algumas moedas dos nostálgicos da minha geração.
Deixou o elevador com um “pláct!” — e lá se foi a película rósea translúcida para dentro das mandíbulas, seguida de um nheconheco contínuo.

“Tsé, tsé, tsé...”, acompanhado de uma espécie de murmúrio íntimo. Me virei na fila do caixa do supermercado, e uma moça de seus trinta anos fazia a própria manicure oral. Ajeitava as compras no carrinho... e voltava a colocar as unhas na boca.

“Tsé, tsé, tsé — humm...” E seguia roendo meticulosamente as cutículas já meio carcomidas. Levei todas essas questões à minha terapeuta.

Quis saber se estou me tornando uma pessoa impaciente demais ou, quem sabe, um velho rabugento daqueles que ninguém aguenta as reclamações de picuinhas.

— Isso é coisa normal da idade — disse ela calmamente, enquanto dava um golinho no chá, emitindo um: “sruuuup...”. Longo. Molhado. E nojento.

Foto do Danilo Fontenelle

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