Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Todo mundo tem uma longa história. Falou-me um muro da cidade enquanto eu passava não sei por qual avenida, dessas cheias de cores e desenhos vivos, em Fortaleza. Verdade. E dentro do carro, talvez a pé eu não percebesse a frase que correu pela janela, pensava no paradeiro do desaparecido político David Capistrano da Costa.
Um cearense de Boa Viagem nascido no 1913 e dono de um enredo sagarana. O cara foi de piloto da Força Aérea Brasileira, depois expulso porque virou comunista e participou do Levante de 1935, a herói espanhol e francês. Lutou na Guerra Civil contra Franco e, com a Resistência Francesa, combateu a invasão nazista em Paris, na 2ª Guerra Mundial.
Mas não me interessa sua pecha de herói da esquerda. Tenho, talvez, curiosidade de saber por que Capistrano decidiu passar quase a vida toda lutando até findar desaparecido em meio a a ditadura militar/civil (1964-1985) no Brasil. O que movia esse senhor extinto como centenas de presos e prisioneiras?
Sim, alguém poderá retrucar: e David Capistrano não teria matado semelhantes na batalha de Ebro, na Espanha, e nos confrontos contra nazistas na França. Provavelmente, mas ali era um campo exposto aos tiroteios, aos bombardeios e coisas afins da imbecilidade de uma guerra em tempo real.
Preso, depois de rendido, não tem de ser torturado como foi o destino do cearense que teve muitas mortes adiadas. Escapou do Getúlio Vargas várias vezes, sobreviveu a Hitler que o devolveu pesando 35 quilos - depois de ser prisioneiro no campo de concentração de Gurs, na Alemanha.
Mas, um dia, se encontrou com torturadores brasileiros. A pior porção de nós, em termos de crueldade, desde as invasões europeias que quase extinguiu as nações indígenas.
"Fiz ainda outras viagens entre a Casa da Morte e a usina de Campos para levar corpos (...) Mais uma vez, não torturei, não matei. Somente transportei os cadáveres para incineração
Cláudio Guerra, delegado aposentado
No livro "Memórias de uma Guerra Suja", Cláudio Guerra, um delegado arrependido do Dops, narra em primeira pessoa o que teria acontecido com David Capistrano.
"Eu me lembro bem de dois senhores que peguei na Casa da Morte (em Petrópolis, RJ) e levei para incineração na usina. Disseram-me se tratar de líderes do Partidão. Um deles me marcou muito, porque lhe haviam arrancado a mão direita (José Roman)".
E continua na página 58: "Ele estava dentro de um saco, perto do corpo, resultado de uma tortura impiedosa. O outro homem parecia ter sido muito torturado. Era David Capistrano. A Casa da Morte era para onde iam as pessoas mais importantes".
E segue: "Fiz ainda outras viagens entre a Casa da Morte e a usina de Campos para levar corpos (...) Mais uma vez, não torturei, não matei. Somente transportei os cadáveres para incineração".
Eram assim os negócios com civis que apoiavam os crimes durante a ditadura, segundo o delegado Cláudio Guerra: "Perdigão e Vieira", dois codinomes de militares do Exército brasileiro, "passaram a contar com a usina de Campos como braço operacional das execuções. Uma alternativa para eliminar vestígios dos mortos pelo regime".
"A usina passou, em contrapartida, a receber benefícios dos militares pelos bons serviços prestados. Era um período de dificuldade econômica e os usineiros da região estavam pendurados em dívidas. Mas o pessoal da Cambahyba, não. Eles tinham acesso fácil a financiamentos e outros benefícios que o Estado poderia prestar".
Pois então... Como David Capistrano era considerado herói francês, o presidente Giscard d'Estaing pediu ao governo Brasileiro que a vida do preso fosse preservada. O general Ernesto Geisel, então ditador em 1974, negou que ele estivesse preso e informou desconhecer o sumiço do comunista.
E o inconcebível em 2020 ainda existirem bestiais elogiando a ditadura e os torturadores...
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