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Não precisamos de heróis
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Não precisamos de heróis

Tipo Crônica
2709demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2709demitri

A ditadura militar é um dos horrores da história do Brasil que deveria estar na escola. Sim, de pequenos aprendermos a não elogiar torturadores nem eleger quem tem parte com milícias e com a intolerância.

Desde crianças, compreendermos a desnecessidade de pais violentos e machos autoritários no poder.

Há histórias sobre a ditadura que não tive acesso no colégio nem na universidade. Duas delas, conto um pouco a seguir. A vida sumida dos cearenses José Mendes de Sá Roriz, natural de Crato, e David Capistrano da Costa, nascido em Boa Viagem.

Por que pincei os dois? Porque não sabia da existência deles nos enredos mal contados da Era Vargas e dos anos de chumbo.

E me chamou atenção a ironia de Sá Roriz e David Capistrano serem veteranos da 2ª Guerra Mundial. Um ex-combatente das Forças Expedicionárias do Brasil (FEB) e o outro, um internacionalista (um soldado voluntário em conflitos pelos mundo).

Os dois sobreviveram à 2ª Guerra Mundial, mas foram trucidados pela ditadura dos generais e de civis bajuladores. O sargento reformado do Exército Sá Roriz, contam os arquivos do Dops e do Dossiê de Mortos Desaparecidos, virou militante do PCB.

Daí o ódio e a obsessão pela tortura e a extinção do que não é espelho. No front na Itália, quando lutava contra os nazifascistas, Sá Roriz teria salvado da morte o marechal Cordeiro Farias. E, em outra batalha, perdido a visão de um olho.

O pracinha quando retornou ao Brasil depois do fim da guerra, a exemplo de alguns febianos, não suportava o fascismo simpatizado por Getúlio Vargas. Ele escapou do getulismo, no entanto, em 1969 e já no regime dos generais, teve de fugir para o México sem a família.

 

José Mendes de Sá Roriz, porque a história da ditadura é cheia de sombras e nunca julgou torturadores e assassinos, recebeu esquecimento.

 

Quatro anos depois, Sá Roriz foi obrigado a voltar para o Rio de Janeiro. O filho de 17 anos havia sido sequestrado por agentes da repressão militar. O adolescente era o mais novo dos quatro rebentos que haviam ficado com a mãe, no Brasil.

Sem opção, Roriz ainda procurou o general Cordeiro Farias, com quem estivera na Itália. Pouco adiantou.

Ele se entregaria em troca da libertação do filho. Assim aconteceu. Porém, em vez de ser tratado feito um preso, de acordo com a lei, o cearense foi torturado no DOI-Codi durante 17 dias até a morte.

Morto no dia 12/2/1973, o atestado de óbito do Hospital Central do Exército do Rio não determinou a causa mortis. José Mendes de Sá Roriz, porque a história da ditadura é cheia de sombras e nunca julgou torturadores e assassinos, recebeu esquecimento.

Assim também se deu com David Capistrano. Um dirigente comunista que se opôs ao fascismo getulista. Militar, participou do levante de 1935, foi preso e, no ano seguinte, fugiu da Ilha Grande - lugar de morte também para opositores do Estado Novo.

Da fuga, Capistrano foi parar na Espanha e como brigadista internacionalista lutou ao lado dos republicanos ibéricos durante a Guerra Civil Espanhola e há registro que teria guerreado na sangrenta da batalha de Ebro - de julho a novembro de 1938.

Em 1938 ainda, foi para a França, lutou contra a ocupação nazista, foi preso e só não teria sido morto porque era estrangeiro.

Ou foi "sorte", mesmo, pois virou prisioneiro em um campo de concentração em Gurs, na Alemanha, e sobreviveu mais uma vez. Com 35 quilos, foi libertado em 1945.

No retorno para o Brasil, Capistrano foi preso novamente na Ilha Grande. E, com o fim do Estado Novo, se reencontrou com a liberdade e conseguiu ser eleito deputado estadual por Pernambuco, em 1947.

Quando veio a nova ditadura (1964-1985), o ex-combatente fugiu do Brasil, foi preso na fronteira com a Argentina, torturado e esquartejado no Rio de Janeiro em 19/3/1974. Seu corpo nunca apareceu. Só não conto mais, porque ainda ando atrás dos deslembrados...

Na lista dos desaparecidos políticos que não estão nos livros de escola os cearenses: José Montenegro de Lima (1943-1975), David Capistrano (1913-1974), Custódio Saraiva Neto (1952-1973), Antonio Theodoro de Castro (1945-1974), Jana Moroni Barroso (1948-1974) e Bergson Gurjão Farias (1947-1972). As ossadas de Bergson foram localizadas.

Dos cearenses mortos e que o corpo foi encontrado: José Mendes de Sá Roriz (1927-1973), Raimundo Nonato Paz (1971), Antonio Bem Cardoso (1938-1970), Frei Tito de Alencar (1945-1974), Pedro Jerônimo de Sousa (1912-1975) e José Nobre Parente (1928-1966).

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