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Leidiane disse que não desistirá
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Leidiane disse que não desistirá

Tipo Crônica
1110demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1110demitri

A vontade era não escrever sobre histórias pesadas. Desejei uma crônica mais com a cara de um domingo quieto. Algo que fizesse o corpo meio que repousar no espírito ou se esbaldar num gozo. Um pouco de pascenta é preciso no pesadelo do Brasil atual.

Nas encruzilhadas da notícia, entrevistei novamente a mãe de Mizael Fernandes da Silva. O adolescente, de 13 anos, executado com um tiro nas costas (enquanto dormia), disparado por um policial militar, em Chorozinho.

Leidiane Rodrigues, adoecida desde o dia em que o destino lhe retirou o filho, passou a sobreviver na súplica para que o Ministério Público, a Justiça e o "dr. Camilo" acreditem na verdade de uma mãe que pariu o menino, agora, morto.

O garoto não tinha arma. Não tinha porque foi criado desarmado. Além disso, os exames periciais nas mãos de Mizael desmentem a versão de um local de crime violado para sustentar um erro durante uma operação da PM.

Leidiane não desistirá, "só morrendo ou sendo morta", de cantilenar que a cria não era de facção criminosa como justificam os policiais para chancelar mais um homicídio de um adolescente no Ceará.

O resultado do Inquérito Policial Militar, que pintou o adormecido Mizael como o pior bandido, feriu mais uma vez a mãe de 33 anos. Uma jovem negra, cortadora de castanha de caju das plantações de Chorozinho. Ela e a família quase toda "despelam" as amêndoas em máquinas rudes nos quintais da zona rural do município.

Mizael (e um bando de meninos e meninas) além de estudar, de desembestar em cavalos pé duros e tomar banho de açude, também "despilicava" a pele das castanhas. Não há romantismo na história desse garoto que nasceu quase sarará em meio a tios e tias pardas, brancas e uma mãe negra.

 

Imagino que o autor do único disparo viva sobressaltado desde o dia em que pôs um fim à breve história do filho de Leidiane. Ele poderia ser vaqueiro ou governado do Ceará... Agora, não terá mais a chance

 

O menino sequer teve tempo de adolescer. Fez 14 anos, já morto, no dia 17 de agosto que passou pra nós. Não era bandido, falo como repórter e a PM sabe que o alvo foi um equívoco.

Até aqui, nem mesmo no Inquérito Policial Militar há provas de que o menino assaltava em Chorozinho e Pacajus. Não há provas de que o garoto havia sido batizado numa facção, não há o histórico de internações de Mizael em algum centro socioeducativo...

Não trouxeram evidência da vida cangaceira do matuto. E na escola onde Mizael estudava, nos Patos, não encontrei o monstro que reagiu (dormindo) à abordagem policial. Nem há crimes do "menino bandido" nas ruas de areia do Salgado e na Lagoa Nova (Barreira). Fui lá, em um dia quase todo.

Pode até parecer que o jornalista, envolvido numa narrativa de "coitadismo da pobreza", assumiu a defesa do menino morto que dormia. Não, não. De tanto ouvir enredos, de tanto ler inquéritos, denúncias e processos, de tanto envelhecer, criam-se alguns filtros e o jornalismo também é técnica.

O caso de Mizael é infeliz para todos os lados. Inclusive para os policiais que fizeram "a merda" (a palavra seria de quem atirou, segundo a tia do garoto).

Ter matado alguém inocente, num arroubo de arrogância e machismo que uma arma dá, deve também ser tormento.

Imagino que o autor do único disparo viva sobressaltado desde o dia em que pôs um fim à breve história do filho de Leidiane. Ele poderia ser vaqueiro ou governado do Ceará... Agora, não terá mais a chance.

Leidiane Rodrigues não desistirá, vai continuar repetindo o estribilho: "Mizael não era bandido. Mizael nunca pegou numa arma".

Foto do Demitri Túlio

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