Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Não há romantismo na pobreza. E nascer uma criatura "assassinável" pelo próprio Estado? E mendigar direitos naturais? Ninguém é parido para a exclusão, dignidade é o mesmo que respirar.
Começo o texto assim, meio panfletário, porque não consegui escrever de outro jeito. Não queria jornalizar, poetizar nem ficcionar a narrativa de agora.
Não nasci Clarice e ressinto, até hoje, os 13 tiros disparados pela polícia no criminoso "Mineirinho". Toda vez que releio a crônica, ela destroça alguma indiferença. Mas pode não incomodar alguém.
"Lembrando bem rápido, Leidiane é mãe de Mizael Fernandes. Um garoto de 13 anos, executado enquanto dormia"
A vida de Leidiane Rodrigues e a de sua família vulnerável não teriam nada a ver comigo nem com a maioria dos leitores, mas têm. E conto mais um capítulo aqui. Infelizmente.
Lembrando bem rápido, Leidiane é mãe de Mizael Fernandes. Um garoto de 13 anos, executado enquanto dormia, depois de uma abordagem desastrosa de policiais militares, em Chorozinho, no Ceará.
O assassinato foi em 2020 e o sargento que atirou no menino adormecido virou réu. Enemias Barros da Silva será julgado por homicídio qualificado. Ele quis ainda enganar os investigadores ao sustentar que Mizael era bandido e os recebeu com um revólver na mão. Uma farsa.
"Desde o assassinato de Mizael, Leidiane deixou de ter vida. Ora se culpando pela ausência do filho, ora mergulhada em remédios"
O Ministério Público ainda denunciou o sargento e os soldados Luiz Antônio de Oliveira Jucá e João Paulo de Assis Silva por alterarem, covardemente, a cena do crime.
Desde o assassinato de Mizael, Leidiane deixou de ter vida. Ora se culpando pela ausência do filho, ora mergulhada em remédios por causa de uma depressão tobogã.
Ano passado, viu-se obrigada a aceitar "perder" outro filho. Por causa de abordagens suspeitas de PMs, o rapaz teve de ser incluído no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. A Defensoria Pública do Ceará retirou o jovem do Estado.
"Depois, uma patrulha também invadiu o quintal da "despelicadora" de castanha caju à procura de um suposto suspeito"
Foi a segunda vez que a moça negra de 38 anos ficou "órfã" de filho. A polícia, sem motivo definido, também o parou no caminho de uma barbearia e, depois, num bar. Somente a ele pediu a identidade.
Depois, uma patrulha também invadiu o quintal da "despelicadora" de castanha caju à procura de um suposto suspeito. Um filme repetido na cabeça de Leidiane.
Na semana passada, outra estranheza. A irmã de Leidiane, Lizangela Rodrigues, de 39 anos, desapareceu. Foi vista pela última vez há oito dias. Lizangela ou "Canoa" é a principal testemunha do assassinato de Mizael.
"Viu os PMs fraudarem o cenário do assassinato, retirando objetos e removendo Mizael - já morto - da cama onde foi executado"
Ele dormia na casa Lizangela, quando a PM chegou atrás de um suspeito e matou o menino que dormia. Foi ela que sustentou que a versão dos policiais era mentirosa e que Mizael não estava armado.
Ela ouviu o disparo. Viu os PMs fraudarem o cenário do assassinato, retirando objetos e removendo Mizael - já morto - da cama onde foi executado.
Ameaçada, Lizangela, o marido e os filhos foram incluídos no Programa de Proteção a Testemunhas. Meses depois, ela desistiu da mudança de vida e retornou com a família para o Ceará.
"Caro Elmano, o Estado tem de tratar melhor a vida das Leidianes, dos Mizaéis e das Lizangelas... E precisa "desnormalizar" as polícias"
Está desaparecida. Leidiane desconfia que pode não ter sido um sequestro ou uma ação de facções ou um perdido da irmã. A Defensoria Pública e Polícia Civil acompanham o sumiço.
Caro Elmano, o Estado tem de tratar melhor a vida das Leidianes, dos Mizaéis e das Lizangelas... E precisa "desnormalizar" as polícias.
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