Logo O POVO+
Leidiane espera sarar o corpo
Foto de Demitri Túlio
clique para exibir bio do colunista

Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Leidiane espera sarar o corpo

A mãe de Mizael Fernandes, adolescente executado depois de uma abordagem policial desastrosa, ainda espera por um pedido de desculpas do Governo do Ceará. Na última semana, o Ministério Público reconheceu o assassinato do menino que dormia
Tipo Crônica
1206demitri (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 1206demitri

.

Leidiane Rodrigues da Silva teve um alento na última semana. Apesar da dor pela ausência indizível do filho Mizael Fernandes, há dois anos assassinado por um policial militar do Ceará, foi um pouco afagada na alma. O Ministério Público, finalmente, denunciou três PMs pela execução injustificável do menino de 13 anos.

"Afago" não seria a tradução para o que tomou o corpo da cortadora de castanhas de caju de Chorozinho. Já escrevi, tantas vezes por aqui, não achar a palavra que dá sentido a um sentimento. E olhe que o português-brasileiro é uma abundância.

A mãe-órfã de Mizael teve uma regozijo incomodo, mas reconfortante dentro de um estado de ruína iniciado em julho de 2020 para ela. O garoto estava de visita na casa da tia Canoa, em um bairro pobre de Chorozinho. Numa ação desastrosa de policiais, o estudante morreu, num tiro, enquanto dormia.

 

Não havia razão para o sargento Enemias Barros da Silva matá-lo. Mizael dormia 

 

O promotor de Justiça Sérgio Henrique de Almeida Leitão, da comarca de onde Mizael foi retirado da vida numa arrogância humana, se convenceu no que a família havia insistido desde o dia do homicídio.

Não havia razão para o sargento Enemias Barros da Silva matá-lo. Mizael dormia.

Para Leidiane soou atenciosa a mensagem, mesmo que protocolar e cheia de palavras "difíceis", da promotoria de Justiça de Chorozinho. Houve um alívio de metade do caminho superado.

 

Leidiane, aos 34 anos, negra e ainda sem letramento, foi acudida para entender que o assassino de Mizael e mais dois PMs deverão ser julgados porque fizeram uma mãe enterrar um filho.

 

"Venho por meio desta informar a Vossa Senhoria que na data de hoje foi oferecida denúncia em desfavor de três policiais envolvidos na morte de Mizael Fernandes Silva Lima".

"A demora fez-se necessária ante a complexidade que o caso apresentou, sendo que empós brilhante trabalho da Polícia Judiciária foi possível oferecer acusação baseada em provas testemunhal e, principalmente, periciais robustas".

"Nesse momento, continuaremos vigilante mirando o mais breve deslinde, registrando que deverá ser assegurado aos denunciados o exercício do direito de defesa e ao contraditório".

 

Canoa, testemunha ocular e irmã de Leidiane, sustentou sempre que Mizael nunca usou uma arma. Os PMs plantaram, grosseiramente, a falsa prova

 

Leidiane, aos 34 anos, negra e ainda sem letramento para decifrar uma mensagem da "Justiça", foi acudida para entender que o assassino de Mizael e mais dois policiais - Luiz Antônio de Oliveira Jucá e João Paulo de Assis Silva, que teriam alterado a cena do crime - deverão ser julgados porque fizeram uma mãe enterrar um filho. Mexeram na natureza das coisas.

Canoa, testemunha ocular e irmã de Leidiane, sustentou sempre que Mizael nunca usou uma arma. Os PMs plantaram, grosseiramente, a falsa prova. Ela insistiu que o menino dormia. Os policiais inventaram uma reação, que se derrubou na perícia.

Tia Canoa fincou pé, sem medo, que o sargento e os dois soldados mexeram, intencionalmente, na cena do crime e impediram a volta da família à casa enquanto alteravam o cenário do erro de abordagem.

 

Leidiane me ligou numa euforia estranha, mas necessária para o corpo dela. Claro. Uma criatura mulher, jovem, cheia de tantos direitos negados desde menina. Da vida privada à rua?

 

Coube aos policiais da Controladoria Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública do Ceará e à Pefoce comprovarem que Canoa falava a verdade. Não havia razão para interromper a vida de Mizael.

Leidiane me ligou com uma euforia estranha, mas necessária para o corpo dela. Claro. Uma criatura mulher, jovem, cheia de tantos direitos negados desde menina. Da vida privada à rua? Basta, né!

Nem ela sabia traduzir a alegria contraditória de ter "vencido" uma parte da disputa de performances públicas e particulares.

 

Leidiane e Canoa são meio Zuzu Angel, só que pobres demais e sem grifes-protestos. Cheias de dignidade

 

Não foi fácil, até aqui, convencer o Ministério Público e a polícia que Mizael foi assassinado enquanto dormia e que não era bandido. E, se fosse, poderia ter sido apreendido vivo. Era um menino mirrado e o Estado fortemente armado.

Agora, Leidiane espera pela condenação dos PMs na Justiça. Não imagina o contrário. Até esperou um pedido público de desculpas do governador Camilo Santana. Não veio. Quem sabe, Izolda, mãe que é, não o faz.

Mizael permanecerá ausente, já é memória e retratos. Infelizmente.

Leidiane e Canoa são meio Zuzu Angel, só que pobres demais e sem grifes-protestos. Cheias de dignidade. 

 

LEIA MAIS SOBRE O CASO MIZAEL

Leidiane disse que não desistirá

"Será que esse policial contou para o filho dele o que fez com meu filho?

Se eu pudesse, devolveria a vida a Mizael

"Não permitiram nem que a gente celebrasse um mês da partida dele", diz mãe de Mizael, garoto morto por PM no CE

 

CONFIRA O WEBDOC

Mizael, a morte sem explicação 

Foto do Demitri Túlio

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?