Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Na crônica de hoje, olhares de um menino sobre o machismo que nos pariu e uma educação que tem medo de falar sobre prazer, instinto, sexo, repressão, gozo, abuso e autoritarismo para crianças e adolescentes
Buick foi o meu primeiro tutor sexual, no Porangabuçu. Para vários meninos e algumas meninas. Do basculante quebrado, via-o fornicar sem cerimônias. Até mamãe perceber e, constrangida, berrar enfurecida.
Aos gritos de "meniiiiino!", ela botava para correr e, às vezes, acertava um chinelo voador quando conseguia ser mais rápida. Na época, não sabia por que era tão perigoso pra ela nos falar sobre sexo.
E Buick nem aí, nenhum constrangimento com os olhares nem com os comentários machistas e os desejos calados dos mais interrompidos.
"O nome Buick vem de um automóvel sedutor das antigas. Uma marca estadunidense, pura ostentação e luxúria"
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Buick era forte, pardo, músculos expostos e veias no pescoço. Tinha uma virilidade do naipe do carro do qual importaram o apelido. Não era um batizado.
Para os novinhos, o nome Buick vem de um automóvel sedutor das antigas, da General Motors. Foi desenhado e oferecido a partir de 1908. Uma marca estadunidense, pura ostentação e luxúria. Perdia somente para o Cadillac.
Ter sido cognominado Buick era o mesmo que receber um certificado de vigoroso. Ainda mais em um tempo tão bruto e militarizado feito os anos 70.
"O homem que não arrebentasse ou matasse a mulher que o desonrasse, seria motivo de boca miúda nas rodas de se falar da vida alheia"
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Machista até o talo. Coisa de o homem ser o chefe da família, o provedor. De "mulher minha" não trabalhar e muito menos frequentar universidade. Era o lar, o magote de filhos (não menos que uma trinca), a roupa para apanhar do varal e transa ruim sem gozo.
O homem que não arrebentasse ou matasse a mulher que o desonrasse, seria motivo de boca miúda nas rodas de se falar da vida alheia. Um "barriga branca", "corno manso" e por aí, ia.
"Buick, a quem devo deliciosos ensinamentos sobre o instinto, era também metido a valente "
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E tanto fazia espancar, atirar, esganar ou esfaquear a "dona encrenca". Quase sempre, era certeza de impunidade por causa da famigerada "legítima defesa da honra" e da tal "violenta emoção". A mentalidade escrota da época.
Buick, a quem devo deliciosos ensinamentos sobre o instinto, era também metido a valente, não aguentava desaforos e sangrava quem ameaçasse o território. Era desses que elegia inimigos e suspeitos, a "criação feito bicho".
Quase todo homem adulto tinha muito de Buick. Eram meninos crescidos no autoritarismo.
Vi meu pai, uma vez, rasgar o vestido de mamãe por causa do decote nos seios fartos e atraentes dela.
Conheci-a proibida de estudar e "trabalhar" por causa dos outros homens. A lida doméstica com seis filhos - uma sogra e um sogro enchendo o saco e um rosário de "afazeres" - era "obrigação".
"De Buick, talvez eu tenha rejeitado a truculência, a macheza alfa e a vocação por brigas na esquina da Tavares Iracema"
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Mamãe se opunha quando podia. Odiava quando meu pai repetia que "casa onde tinha mulher, filho meu não lava colher". A gente ia pra pia.
De Buick, talvez eu tenha rejeitado a truculência, a macheza alfa e a vocação por brigas na esquina da Tavares Iracema com Professor Costa Mendes.
Ele, Buick, não deixava que nem um outro cachorro mijasse nos postes de seus domínios. Deitava onde ficava a bodega de seu Geraldo, o "dono" dele desde filhote. Era muita coleira e peia para deixá-lo feroz.
"Cheirava-a por trás, lambia-a com gosto e, depois, ia e vinha até engatar um no outro"
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Buick corria atrás dos pneus dos fuscas, dos corcéis e não dispensava os caminhões da Coca-Cola e do gás butano. Ele se irritava com o sino na porta do motorista.
Era um pé-duro aborrecido e ameaçador, principalmente, para crianças. Mas os primeiros olhares sobre instinto sexual foram entranhados por Buick. Era bom vê-lo dominado por uma parceira na esquina.
Arreado pelo cheiro enfeitiçado dela e eu a imaginar qual o era o barato daquele torpor no corpo viçoso. Cheirava-a por trás, lambia-a com gosto e, depois, ia e vinha até engatar um no outro. A língua pingava uma baba de gosto. Depois, esperavam se despregar. Eu ainda não sabia dar nome ao gozo.
Desgrudavam-se e iam. Buick voltava à vidinha de "macho véi" na esquina e ela, livre, era seguida por uma récua de outros cachorros. O cheiro ainda havia.
Eu não queria ser o Buick, desejava naquele tempo ser um dos vira-latas do frenesi dela.
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