Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações
Recebo uma demanda que me atiça o corpo de repórter e o cronista se enche de inveja. Nos 60 anos que marcam o golpe militar (e cívico) de 1964, me pedem para identificar o endereço de um torturador que serviu, devotadamente, à ditadura.
Ele atuou, principalmente, no Doi-Codi em São Paulo e voltou a viver em Fortaleza. É um ex-policial civil.
O pedido vem do Rio de Janeiro, de um jornalista que sofreu com as sevícias dos interrogatórios e o gozo sádico de quem tem prazer pelo corpo do outro em humilhação. Foi torturado por ele. Não sei se são doentes os torturadores. São não.
A pergunta é feito oferecer uma xícara de açúcar a uma vizinha e retorna uma fatia de bolo
E me passaram o nome de batismo do (terrivelmente) cristão, o endereço e fui atrás de seu apelido "de porão". Por enquanto, para não o espantar, guardarei a identificação do sujeito. Para tentar chegar mais perto e oferecer-lhe, gentilmente, o gozo de uma entrevista.
Uma entrevista pode ser uma técnica investigativa ou um ato exagerado de amor. Não é um interrogatório, ela inclui. A pergunta é feito oferecer uma xícara de açúcar a uma vizinha e retornará uma fatia de bolo no pratinho. Tão meu quintal isso!
Não há ao redor da entrevista uma mesa servida com fios descascados, pinos e buracos de macho e fêmea para meter e descarregar... nem um camburão d'água e um saco plástico para desrespirar alguém.
Não há cadeira do dragão nem uma luz fixa no olho aberto do entrevistado
A entrevista conversante e reveladora poderá deixar nus entrevistado e repórter, mas nunca os forçar ao deprimente de expô-los ao humilhante, ao estupro nem usar cabos de vassouras e objetos do fetiche de torturadores.
Não há cadeira do dragão nem uma luz fixa no olho aberto do entrevistado. E se houver algum bicho no cenário da sala de entrevista, nunca um jacaré, cobras, ratos e baratas para abortar respostas. Podem ser gatinhos.
Pois bem, sobre o destino do torturador que vive anônimo em Fortaleza, hoje é um velhinho de 84 anos de idade. Um aparente inofensivo sem passado.
Há desses homens (e mulheres) de bem ainda vivos por aí. Perto ou com mais de oitenta anos de idade
Ele mora em um condomínio de classe média no Antônio Bezerra, tem filhos já criados, netos e uma esposa que ainda o serve à mesa (apesar dos gritos de marido). É um idoso, um senhor mais ou menos cortês, principalmente, com os de fora.
Lembrei da última coluna do Ruy Castro repassada por Émerson Maranhão para mim. Há desses homens (e mulheres) de bem ainda vivos por aí. Perto ou com mais de oitenta anos de idade. Torturadores, censuradores e e dedos-duros... um povo ainda zelador da ditadura.
Muitos deles evangélicos e católicos que enxergam no papa Francisco um anhangá. São os "tarados" descritos por Nelson Rodrigues - o conservador perenal que sempre o lerei.
Por óbvio são os defensores de Deus, d pátria, da família e da liberdade ao modo deles
Há também advogados, juízes, médicos, políticos, padres, pastores, jogadores de futebol, esportistas, bancários, jornalistas, empresários, catadores, porteiros, militares, pais, mães, avós, filhos, netos e tios de família...
Por óbvio são os defensores de Deus, da pátria, da família e da liberdade ao modo deles. Numa avareza coletiva e sempre na busca pelo privilégio de atalhar a fila em qualquer circunstância.
A maior parte deles doou até inteirar R$ 17 milhões, via pix, para Bolsonaro se tornar mais milionário na calaçaria. Um golpe bem dado, reconheçamos.
E o torturador ancião que vive anônimo em Fortaleza, e talvez esqueceu do que fez na ditadura passada, passou a usar o "Jair Bolsonaro Family Ensemble". Ao preço de R$ 380, parcelados em 12 vezes no cartão de aposentado.
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