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Sob as águas do Castanhão
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Sob as águas do Castanhão

Tristão não é herói, mas tem permanência até hoje por causa do rompante de amor entre ele e a insurgente ideia de soberania
Tipo Crônica
0707demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0707demitri.jpg

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É uma lenda. Inventada porque a realidade é muito chata e, às vezes, é preciso transfabulá-la. Contam que em Aracati quando outubro sopra à porta dos casarões antigos na rua Grande, Tristão Gonçalves e uma tropa de centenas insurgentes cavalgam até a casa onde abrigou os confederados do Equador.

Comandante dos sublevados contra o autoritarismo de dom Pedro I em 1824, o presidente da província do Ceará-Rebelde vem em fantasmas. Pós seu assassinato e, provável, decapitação em Santa Rosa, atual Jaguaribara.

Tristão, sem a mão esquerda e o pescoço costurado, reocupa o sobrado verde e se desencanta com fim do exílio da morte de 200 anos atrás. Desiludido, e o tropel quieto nas calçadas desarborizadas de Aracati, ele sabe que não há mais tropas imperiais para matar ou submetê-las.

 

 

Mas volta, sempre, quando chega outubro em busca dos dias derradeiros. Datas antes de sua capitulação e o não-fim da guerrilha que encabeçou pela expulsão dos invasores portugueses, a derrubada da monarquia e a rebentação da república.

Tristão ainda viveria num metaverso paralelo entre 1824 e 2024, mas que se esfarinha no vale do esquecimento e no apagamento de uma guerra puxada por uma elite insatisfeita com a pouca participação na corte fluminense.

Havia ainda guerreiros escravizados, cabras e indígenas - espécies de gente desconsiderada pelos portugueses.

O Nordeste ainda nem era Nordeste e as distâncias eram longes. E nunca houve, também é lenda, o espírito do separatismo. Uma releitura às avessas até hoje. O caso nem era esfacelar o território indígena tomado em 1500 pelos drogos luso-católicos e ingleses. Não. Era defenestrar o sistema arcaico.

 

 

O ideal era confederar, puxado principalmente por Pernambuco desde 1817 e a violenta reação do Império carioca. O medo era ser um "Brasil" mais submisso do que hoje naquele passado de estupros, dia e noite, por portugueses, ingleses, espanhóis, franceses, holandeses e austríacos.

Tristão não é herói, mas tem permanência até hoje por causa do rompante de amor entre ele e a insurgente ideia de soberania. Mais amor do que o dele por Ana Triste - muda infinita depois da notícia da execução do homem com quem se deitou.

Esse tempo nunca passa, não é de ontem nem de hoje. Mora no som da cabaça, nem tá preso nem foge no instante que tange o berimbau... Tristão ouviu isso do Spotify de alguém que transava numa janela aberta de um casarão, na madrugada de Aracati.

 

 

Antes a província era pequena e a Terra era gigante, hoje o Ceará é gigante e a Terra foi amiudada. Ali no casarão, Tristão lembrou da coragem ao emprestar o corpo ao risco de morte. Bem antes de 1824 foi preso, depois da derrota em 1817. Ele, o irmão Martiniano, a velha mãe Bárbara e anônimos da história.

Escapou no pós 1817! Talvez porque fosse um Alencar, branco, de família também dona de escravizados, de terras e pertencente a uma elite privilegiada criada entre o seminário de Olinda, Recife, Exu e o Crato.

Tristão lembrou da prisão antes da farsa da Independência. Dos dias de prisioneiro do imperador e a distância longe da viagem entre Crato e Fortaleza. E, na capital, o deporto para um calabouço na Bahia e a tortura até 1822.

 

 

O texto é dele e está no Diário do Governo do Ceará, o primeiro jornal cearense. É uma tentativa de empolgar brasileiros daqui a se rebelarem contra o déspota Pedro I. Foi em 3 de abril de 1824, quando já havia tomado o governo do imperialista Costa Barros.

Recordou do cárcere em Salvador. "Cearenses, caros patrícios! Lembrai-vos das minhas cadêas; meos pulços enegreceram nas algemas; meo pescoço com o pezo das correntes apenas era aliviado com os cujos trapos da minha nudez;

Estive quase quatro annos a cada instante na escada do patíbulo às mãos dos algozes; e quem merecia tão penosos sacrifícios?"

Quis voltar a Fortaleza, mas somente havia guerreiros fantasmas de 200 anos. Reuniu o tropel e antes que amanhecesse no rio Jaguaribe, sumiu descendo até as águas do Castanhão.

Virou uma lenda cearense, uma ideia até hoje.

 

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