Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações
Uma amiga dá o corte: a "cachorrinha da Praça do Ferreira" morreu. Não sei de quem ela fala. Espanta-se. A parceira do rapaz venezuelano que migrou para o Brasil e descobriu Fortaleza! Sentou praça aqui e vence os dias
Pois se somos crônicas, talvez ela entre pelo corpo e não queira se desfazer de nós. Mesmo que o cronista insista em outros descaminhos, é talvez imperatório o texto inevitável da esquina, da rua, de dentro da gente, da boca.
Minha cabeça rodou por alguns assuntos, o documentário que estamos fazendo e a constatação da cafetinagem online. E não é o puritanismo, o julgamento chulo sobre o corpo prateleira do outro, a possibilidade do trabalho sexual e um job também.
Não. O que me baldeou foi a pobreza de ter de sobreviver e se obrigar a submeter-se. Ali, numa plataforma cafetã, vigiando a carne alheia e ganhando 50% pelo programa virtual. É real e degradante passar por histórias escrotas.
"A entrevista funciona quando desconstruo algo, quando derrete pedras e cria lastro nunca peremptórios"
Tenho um problema com o jornalismo e são poucas as querelas com a profissão que me oferece prazeres. A entrevista. Esse momento de extremo ir e vir e um desaprendizado necessário.
Da palavra mais besta que valoraram não sei quando, talvez por minha mãe ou meu pai, em algum lugar da pré-história. O que li por último e, sei lá, acrescentei. É besta o papo aparentemente desnorteado, mas não é. Pode ser atordoado.
A entrevista funciona quando desconstruo algo, quando derrete pedras e cria lastro nunca peremptórios. Adoro catar palavras no dicionário para lembrar do português que me invadiu desde 1500.
"Uma escravizada ubersexual, submetida à condição de precariedade por causa do preconceito"
Digo da entrevista porque cada vez que encaro uma entrevistada ou entrevistado, ainda não me acostumei mesmo nos 28 anos de batente periodista. Ela faz redemoinhos. Nas agonias e deleites.
A última foi uma garota trans, 26 anos, moradora do Siqueira, trabalhadora sexual das plataformas cafetinas para 18 .
Uma escravizada ubersexual, submetida à condição de precariedade por causa do preconceito; e impor-se a pegar "o que resta" do capitalismo heteronormativo e outras bostas.
A entrevista foi boa, mas o que é o "boa". E para quem? Ela me disse ali, vestida, desnuda, carne fetichizada, que era atriz atuando. Deixava o cavalo descer num transe para dar o que se deseja. E, claro, tirar o que puder de grana de quem fantasia em seu corpo pelas telas.
"Mas uma amiga dá um corte: a "cachorrinha da Praça do Ferreira" morreu. Não sei de quem ela fala"
Há uma semana, meu estômago desacostumou-se. Tem gente que quando fica tensa manda as dores pra cabeça, para a lombar, para os sestos compulsivos. Mordiscar as unhas, fazer a barba, ir ao salão e esvoaçar os cabelos...
Meus intestinos dão sinal de lembrança, apertam-me como se eu tivesse numa digestão sucuri. Preciso de uma coca-cola, das longarinas do Havaizinho, da calistenia me desiludindo o corpo.
Mas uma amiga dá um corte: a "cachorrinha da Praça do Ferreira" morreu. Não sei de quem ela fala. Espanta-se. A parceira do rapaz venezuelano que migrou para o Brasil e descobriu Fortaleza! Sentou praça aqui e vence os dias.
"Há uma alegria, um adocicado e uma história de amor achada entre o rapaz Yorge e a cadela miúda Jaspe"
Os dois são artistas. Vou ao Instagram (@cahorrinhaartistaoficial), meto os olhos na janela alheia e pública. Ele é performance de estátua viva, dourada, um alienígena do mar, remo, samburá e peixes do Ceará. Ela faz graça, atua nos vídeos.
São milhares de seguidores, centenas de curtidas e comentários. Derretimentos e apupos por frase assim: "amanhã será melhor". Há uma alegria, um adocicado e uma história de amor achada entre o rapaz Yorge e a cadela miúda Jaspe.
É também de sobrevivência o enredo. Um migrante venezuelano, categorizam assim as pessoas que se deslocam no mundo territorializado, e uma "Cachorrinha artista" que termina salvando a vida do moço. E continuará.
"Jaspe virou celebridade, ganhou um post da Prefeitura de Fortaleza. Quase um Bode Ioiô reencarnado"
Talvez, eu tenha visto ele e ela em alguma paisagem acostumada de Fortaleza. Praça do Ferreira, Praia de Iracema, calçadão da Beira Mar. A Cidade, estranha e aperreada, inclui alguns e perde de vista outros.
Não gosto do choro em redes sociais e likes, mas tenho compaixão pelo luto e a saudade de Yorge. Jaspe virou celebridade, ganhou um post da Prefeitura de Fortaleza. Quase um Bode Ioiô reencarnado. "Foi arte. Agora, é memória viva da cidade", decreta o Instagram do poder municipal.
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