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Márcia e Leonardo
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Márcia e Leonardo

E se tivesse vindo em corpo divergente? Não existia arapuca nisso. Contrário, seria uma revoada ao devoto do que é livre e pode também existir
Tipo Crônica
1808demitri (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 1808demitri

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O rei da poesia da minha rua escrevia textos bestas e lia "Tabacaria", de Fernando Pessoa. Um poeta das coisas impalpáveis como dizia Márcia a Leonardo. Um amor resistente, de um tempo alongado e os dois ainda se bebericarem, se lamberem! Amantes longevos, graças ao infinito sempre rebrotante.

Era um rei da covardia, nunca engaiolou nenhum pássaro. Escondia este segredo. Não quis nenhum cantar prisioneiro nem permitiu, jamais, furar as vistas do assum preto. Era delicado, tinha uma queda para as insignificâncias.

Talvez, por razão assim, a mãe tivesse lhe dito (com medo) o receio fosse ele "viado". Mas por quê? Por causa dos versos? Porque trouxe a primeira vez Tabacaria para a mesa da janta e o pai se retorceu e a mãe suou nas mãos.

 

Era perigoso, naquele tempo, um menino tão sensível. Lendo poesia

 

E se tivesse vindo em corpo divergente? Não existia arapuca nisso. Contrário, seria uma revoada ao devoto do que é livre e pode também existir amorosamente. Qual o mal?

Era perigoso, naquele tempo, um menino tão sensível. Lendo poesia e acompanhando-se de quem não gostava de futebol e briga entre machos. Eram as tabuletas das leis, todo rapazola tinha de saber chutar, gritar, estuprar e esculhambar com palavrões a rua quando não lhe permitia as arrogâncias e vaquejadas.

Coitados dos bezerros arrastados pelos rabos, humilhados na medina, perseguidos pelo pavor da morte e o sangue em glória dos galudos estúpidos. Não era dessa espécie de macho.

 

A alma de sonhar-te dele andava perdida. Os olhos cegavam

 

Ele derramava poemas! Quando descobriu Florbela Espanca correu à biblioteca dos padres irlandeses, do colégio Redentorista, e não tinha nada sobre a poeta portuguesa. Então repetia o mesmo verso tantas vezes cantado pelo bruto-sensível do Fagner Orós.

A alma de sonhar-te dele andava perdida. Os olhos cegavam de tanto ver diferente. Não era sequer a razão sua de viver, pois ela era já toda a sua vida. Não via nada assim, enlouquecido. Passava no mundo seu amor a ler... o misterioso livro da existência...

E declamava "Tabacaria" para Toinha, a moça negra que lavava as trouxas de roupas para mamãe. Ela ria, achava aquilo um deslumbramento e comentava para a patroa que aquele menino era tão diferente dos outros do bando.

 

A senhora rebentou poesia, já veio versículo quando arremeda as flores

 

Diferente como? A mãe se aperreava. Ficava entre gostar daquele tipo de lampejo de homem, mas ao mesmo tempo com uma vergonha feliz que ela não sabia se sublinhar. Ele já havia chamado a mãe num canto e recitado coisa sem necessidade.

Mãe, a senhora não precisa de religião nem de deuses nem da Virgem Maria. Não se peque! A senhora rebentou poesia, já veio versículo quando arremeda as flores. O que elas dizem? Traduz pra mim as margaridas amarelando... Quais os arrepios delas quando a senhora não está?

É como se perder de Deus e não querer, mas se perder. Algo que faça mais sentido amar. Um rio, um mar imenso, uma mata escura, um amor sem fim. O mundo vai passar, as tabuletas irão ser redesenhadas, as pessoas também. Os encontros, todos únicos.

 

Aproveitei Márcia e Leonardo, casal de amigos antigos, se declarando em "Tabacaria"

 

Queria ter escrito uma declaração amorosa para quem aniversaria em agosto, aos aniversários das saudades, dos amores feitos, dos acabados e dos rearborizados. Dos paridos em Leão.

Aproveitei Márcia e Leonardo, casal de amigos antigos, se declarando em "Tabacaria" para costurar uma narrativa de pé quebrado, mas de rima de cor. Ainda tenho em mim todos os sonhos do mundo, apesar dos descarinhos.

 

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