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As muitas faces de Rita Lee: uma história de vida e obra
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

As muitas faces de Rita Lee: uma história de vida e obra

Ícone maior do deboche-pop-tropicalista-brasileiro, Rita Lee encarnou muitos personagens ao longo da carreira. Tantos que não cabem no título de "rainha do rock"
RITA LEE CAPA OP MAIS (Foto: JANSEN LUCAS )
Foto: JANSEN LUCAS RITA LEE CAPA OP MAIS

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Uma dica certeira a você, cantor, que quer fazer um show popular, que chame público, e te faça posar de corajoso, moderno e revolucionário: faça um tributo a Rita Lee. Há algumas décadas é assim, não falta quem celebre a dita “Rainha do Rock”, que nunca perdeu a majestade nem a fama de maluca. A autointitulada “ovelha negra”, termo que nem cabe mais nos tempos modernos. Mas Rita era bem mais que rock, que revolução, que maluca. Certamente, até mais que a música que fez. Rita é uma bandeira de possibilidades e liberdades que chegam quando se faz o que gosta.

Arrisco dizer que Rita Lee é um personagem criado por uma jovem paulistana, nascida e crescida na Vila Mariana, numa casa aberta à criatividade, numa época que buscava formas diversas para se expressar. A criadora dessa personagem foi Rita Lee Jones, uma menina magrela, de cabelos ruivos, que um belo dia pulou a janela de casa pra tocar numa banda de rock. Agora você imagina: se na década de 2020 ser artista não é coisa de “gente de bem”, nos anos 1960 era bem pior.

A personagem Rita Lee foi convidada a “sumir” de casa pelo pai. Afinal, um "roqueiro ovelha negra da família” não é de bom tom. Já a criadora dessa personagem ganhou do pai a primeira bateria e saiu de casa sem maiores conflitos. Saiu de casa para fundar os Mutantes, banda que revolucionou a música brasileira e tornou-se referência mundial, com fãs como Julian Lennon e Kurt Cobain. Aliás, o que seria de Pato Fu, Kid Abelha, Metrô e outras bandas se, décadas antes não tivessem nascido os Mutantes? O trio, formado por Rita, Sérgio e Arnaldo Baptista virou banda internacional “made in Brasil”, só poderia ter nascido no seio farto de talentos que foi a Tropicália.

Falar de tropicalismo sem falar em Rita Lee é como visitar o Rio de Janeiro e não ver o Cristo Redentor (pensei na analogia do Vaticano e do papa, mas creio que ela preferisse algo mais brasileiro). Foi no berço desse movimento que a criadora (Rita Lee Jones) e a criatura (Rita Lee) se mostraram mais presentes. Coube a ela inventar figurinos que iam de noiva a alienígena, e letras que falavam de futuro espacial (“2001”), demônio idílico (“Ave, Lúcifer”) e eletrodomésticos revoltados (“Meu refrigerador não funciona”, onde veste com sua melhor Janis Joplin). A propósito, ser roqueira não a impediu de ser convidada pelo mestre da bossa nova João Gilberto para participar de um especial de TV. Convite aceito, ele retribuiu participando de um disco dela pouco depois. Que luxo!

Rita Lee Jones tinha lá seus problemas, como alcoolismo, bipolaridade e, como se soube mais tarde, um maldito câncer que a maltratou tanto. Já Rita Lee é o que muitos e muitas queriam ser. A mulher livre que, bem antes de virar moda, já falava em preservar a natureza e não consumir carne animal. Quando, no início dos anos 1980, nasceu um primeiro programa com temáticas feministas, falando de métodos contraceptivos, menstruação e violência doméstica, a música de abertura não poderia ser de outra pessoa: era Rita Lee cantando “Cor de rosa choque”.

Bem menos louca do que se pensa, Rita Lee Jones virou a esposa-mãe feliz, dona de casa bem sucedida dos anos 1980 em diante. Com nome de ídolo, o marido Roberto ajudou a organizar o talento da esposa e as contas de casa. Foi uma fase produtiva, de grandes shows, discos vendendo a rodo e onipresença em rádio e TV. Tanto foi que até nasceram outros personagens. Teve o Aníbal, mecânico que entrevistava famosos na MTV, e Gungum, uma menininha que gostava de fazer perguntas indiscretas. Num caso que só a psicoterapia é capaz de resolver, Gungum chegou a gravar com Rita Lee na faixa “Xuxuzinho” e trocar uma ideia rápida com Cássia Eller no “Acústico MTV”.

Independente da persona, todas as Ritas tinham como principal característica o deboche. Fosse em disco, no palco ou na TV – onde participou de novelas e programas que dividiu com Chacrinha, Trapalhões e Hebe Camargo – a marca do bom estava estampada no sorriso largo de lábios vermelhos. Inteligente como poucos, ela era capaz de brincar com o trágico e rir disso logo depois. Se não, por que mais batizar seu tumor de “Jair”?

A história Rita Lee e sua criadora, Rita Lee Jones, começa em São Paulo, na Vila Mariana, e recomeça no céu, para onde ela mudou na última segunda, 8. Mas não é aquele céu careta, com uma vastidão de nuvens e anjos tocando harpa. Nesse momento, ela deve estar traçando um bom café da manhã vegano ao lado de amigos como Charlie Watts, John Bonham, Erasmo Carlos, Celly Campelo, Gal Costa, João Gilberto e sua admirada Carmen Miranda. Vestida com seus figurinos ou mesmo nua, como sempre se mostrou, ele já deve ter voltado a usar os cabelos de fogo, como cantou Cazuza, outro que deve ter lhe recebido de braços abertos. Por aqui fica o legado de uma artista incomparável, inimitável e inesquecível. Por lá, começa uma festa como nunca se viu antes.

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