Traços de Guerra: uma reflexão sobre Israel e Palestina
clique para exibir bio do colunista
Jansen Lucas é coordenador de criação no O POVO, publicitário, designer e artista visual. Dedica-se a escrever sobre cultura com foco em produções de quadrinhos, cinema e literatura, explorando as conexões entre arte, narrativa e mídia em seus trabalhos
No dia 7 de outubro de 2023, o Hamas, grupo militante e político palestino fundado em 1987 e governante da Faixa de Gaza desde 2007, lançou um ataque surpresa contra Israel, dando início a um dos conflitos mais sangrentos da região em décadas. O grupo disparou milhares de foguetes e invadiu o sul do país por terra, mar e ar, matando cerca de 1,2 mil pessoas, a maioria civis.
Israel demorou algumas horas para reagir e só conseguiu conter totalmente a incursão três dias depois. A resposta desencadeou um conflito devastador, que já deixou mais de 50 mil mortos em Gaza e afetou outros países do Oriente Médio, como Líbano, Síria, Irã e Iraque. No entanto, essa guerra não é um episódio isolado, mas parte de uma longa e complexa disputa entre israelenses e palestinos, que remonta à criação do Estado de Israel em 1948.
Quando Art Spiegelman (autor de "Maus", 1986), um dos nomes mais consagrados dos quadrinhos, anunciou que lançaria uma obra sobre os recentes acontecimentos em Gaza ao lado do renomado jornalista e quadrinista Joe Sacco (autor de "Palestina", 1993), esperava-se uma grande reportagem em quadrinhos, no estilo dos trabalhos anteriores de ambos. O que gerou uma enorme comoção no meio.
Foto: Cia dos Quadrinhos/Divulgação
Art Spiegelman, autor da HQ Maus
No entanto, rapidamente os autores esclareceram que se trataria de uma colaboração curta, com no máximo três ou quatro páginas. O resultado, "Nunca Mais!... e mais, e mais...", publicado no Brasil em março deste ano pela revista Piauí, traz um diálogo breve, mas profundamente marcante, entre os dois artistas, refletindo sobre um passado doloroso e um futuro pouco esperançoso.
“Maus”, a primeira obra em quadrinhos a ganhar o Prêmio Pulitzer, relata os horrores vividos pelo povo judeu sob a ótica do pai de Spiegelman. O autor, judeu, rejeita qualquer associação de sua obra aos atos cometidos pelo governo de Benjamin Netanyahu. “Eu não fiz ‘Maus’ para ensinar nada a ninguém. Não criei um ‘Auschwitz para principiantes’”, afirma. E reforça que não quer que sua obra seja vista como algo que justifique o que o governo de Netanyahu esta fazendo ao povo palestino.
Já Joe Sacco, que documentou as atrocidades sofridas pelo povo palestino ao longo das décadas, tem diversos amigos na Faixa de Gaza e recebe relatos diários sobre mortes e destruição. O diálogo entre os dois atinge um ponto crítico quando Sacco pergunta:
— Você chamaria isso de genocídio?
— Uma espécie de genocídio. Eu chamei de ‘limpeza étnica’ — responde Spiegelman sem hesitar.
Foto: Quadrinhos na Cia/Divulgação
Joe Sacco, autor da HQ Palestina
Afinal, o que Israel pretende? Aniquilar até o último palestino? Mas não era a Palestina um território soberano antes da chegada dos judeus? O quadrinho, apesar de curto, aprofunda-se nessas questões e ainda levanta outra provocação: se o Hamas tivesse o mesmo poder de fogo de Israel, agiria da mesma forma ou seria ainda pior? A obra não ignora o fato de que, quando um povo é empurrado ao limite pela violência e repressão, a tendência é reagir com a mesma intensidade.
Israel foi fundado em 1948, após o Holocausto e o fim da Segunda Guerra Mundial, quando a comunidade internacional, liderada pela ONU, decidiu criar um Estado judeu na Palestina. No entanto, essa região já era habitada por árabes palestinos, que foram deslocados, perderam terras e não receberam direitos iguais. No fundo, trata-se de dois povos traumatizados, perpetuando ainda mais traumas um no outro.
O fato é que Israel já existe e não deixará de existir. Spiegelman e Sacco reconhecem essa realidade, mas deixam claro que, apesar do diálogo proposto no quadrinho, a solução para esse conflito exige muito mais do que palavras, mas sim chegar a uma solução, que seja ideal, e não uma solução final.
“Nunca Mais!... e mais, e mais…” é uma daquelas obras que marcam a história dos quadrinhos e une o estilo autobiográfico de Art e o jornalístico de Sacco de uma forma que conseguimos identificar a “assinatura” de ambos de forma muito clara.
Em poucos quadros, que fluem como uma conversa de bar, os autores iluminam a hipocrisia israelense sem ignorar a complexidade do que o 7 de outubro de 2023 representou. Apresentando uma obra que apenas dois gênios como Art Spiegelman e Joe Sacco poderiam criar.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.