Jansen Lucas é coordenador de criação no O POVO, publicitário, designer e artista visual. Dedica-se a escrever sobre cultura com foco em produções de quadrinhos, cinema e literatura, explorando as conexões entre arte, narrativa e mídia em seus trabalhos
Foto: Netflix/Divulgação
Rebeca Jamir (Isaura), Johnny Massaro (Antonino) e Rodrigo Santoro (Crisóstomo) entregam performances visceraisem O Filho de Mil Homens, novo longa nacional da Netflix
“O Filho de Mil Homens”, adaptação do romance homônimo de Valter Hugo Mãe, chega ao catálogo da Netflix em 2025 como uma das mais pulsantes surpresas do cinema brasileiro recente.
Sob a condução de Daniel Rezende, que em 2021 entregou o delicado “Turma da Mônica: Lições”, o filme costura quatro narrativas fragmentadas que, pouco a pouco, convergem num fluxo de afetos onde dor, amor e esperança se entrelaçam com rara força.
Inspirado na obra de um dos mais importantes autores portugueses contemporâneos, o longa se dedica a romper paradigmas sociais ligados à sexualidade, paternidade, afeto e pertencimento, convidando o espectador a rever noções arraigadas sobre família e convivência.
Entre os destaques, está Rodrigo Santoro, que interpreta Crisóstomo, um pescador solitário prestes a completar 40 anos, tomado por um desejo profundo de ser pai.
Embora compartilhe o protagonismo com outros personagens, Santoro ancora o filme com uma atuação contida, mas carregada de sensibilidade, uma presença silenciosa que abre espaço para que cada figura ao seu redor floresça em tela.
Crisóstomo é a ternura inesperada da narrativa. Em vez de se render à amargura de antigos traumas, ele segue impulsionado por uma vontade imensa de formar uma família, um homem em busca de um filho. O protagonista acaba encontrando Camilo, um menino órfão.
Juntos, são o espelho de uma frase que sintetiza o coração do filme: “pai sem filhos procura filho sem pai”. Essa relação, por si só, desafia o modelo masculino predominante e revela uma masculinidade mais doce, vulnerável e afetiva.
O longa prefere sugerir a explicar. Seus personagens são revelados por meio de gestos mínimos e momentos que falam por si. Um exemplo marcante é a cena em que Crisóstomo arruma a mesa para Isaura (Rebeca Jamir), enquanto a história dela carrega o peso de um lar em que a figura masculina dominava.
Na simplicidade dessa ação cotidiana, o filme traça um paralelo poderoso e, ao mesmo tempo, desmancha na mente da jovem a ideia do “papel correto” entre homem e mulher construído em sua mente.
Visualmente, a narrativa é guiada por uma fotografia quente, que combina realismo e um leve sopro de maravilhamento. Essa atmosfera luminosa, porém, não impede que o filme encare momentos de brutalidade, incluindo execuções públicas de personagens que "ousam" não se enquadrar na ordem social imposta, lembrando ao espectador da violência estrutural que atravessa aquelas vidas.
O esmero estético salta aos olhos. A diretora de arte Taísa Malouf cria universos particulares para cada personagem, modulando cenografia, cores e figurinos com precisão quase coreográfica.
São “mundos paralelos” que coexistem e se tocam, reforçando que as tramas secundárias são tão essenciais quanto a história central.
Com poucos diálogos, o filme faz de cada palavra um acontecimento e utiliza o silêncio como elemento narrativo. A trilha sonora, por vezes ausente, abre espaço para momentos de contemplação que se impõem naturalmente ao espectador.
Há uma sequência especialmente comovente que se sustenta apenas em gritos, não falas, arrancados das profundezas dos personagens, elevando a emoção a uma dimensão quase ancestral, capaz de comunicar o que não cabe em linguagem.
Em "O Filho de Mil Homens" a direção de Daniel Rezende entrega uma adaptação vigorosa, de atuações marcantes e com fôlego para figurar entre os destaques do ano.
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