Jansen Lucas é coordenador de criação no O POVO, publicitário, designer e artista visual. Dedica-se a escrever sobre cultura com foco em produções de quadrinhos, cinema e literatura, explorando as conexões entre arte, narrativa e mídia em seus trabalhos
Quando iniciei a leitura de "Animais Tropicais", do autor brasileiro Javier A. Contreras, esperava, de certa forma, me deparar com ecos desse universo. De fato, minha intuição estava parcialmente certa. Contudo, para minha surpresa, estava também redondamente enganado. E que bom.
Foto: Companhia das Letras/Divulgação
Capa Animais Tropicais, novo livro de Javier A. Contreras
Lançado recentemente pela Companhia das Letras, "Animais Tropicais" é uma obra que escapa a categorizações fáceis. O romance transita por uma trama de suspense, incorporando elementos do folk horror e do realismo mágico, enquanto desenha uma crítica ácida e perspicaz sobre um Brasil autoritário, e não apenas o de ontem, mas também o de hoje.
A narrativa acompanha dois jornalistas, Emílio e Sara, que partem à procura de um colega desaparecido durante uma investigação.
O desaparecimento os conduz a uma comunidade remota, isolada no alto de uma serra, onde, ao se depararem com a poderosa família Salvador, descobrem que a beleza da paisagem e as flores que dominam a região escondem algo muito mais sombrio. Aquele que parecia um refúgio pacífico revela-se um microcosmo de mistérios e violências passadas e presentes.
O romance se passa na "Terra Luminosa", o nome da localidade que, como um labirinto, entrelaça passado e presente, criando uma atmosfera densa e repleta de tensão.
A narrativa percorre a trajetória da família Salvador, desde o nascimento de seu primogênito até o envelhecimento de Salvador Pai, um homem de caráter autoritário que, desde a primeira aparição, se revela alguém que impõe sua vontade com mãos de ferro.
Foto: Companhia das Letras/Divulgação
Javier A. Contreras é ex-repórter policial, escreveu Imóbile, finalista do Premio São Paulo de Literatura.
A alternância temporal do autor não é apenas uma ferramenta narrativa, mas uma estratégia que espelha a continuidade de um poder opressor, cujas raízes se prolongam ao longo das décadas, tocando a história de um Brasil coronelista e ditatorial.
Javier faz uso de múltiplas vozes narrativas, um recurso que aprofunda o retrato de um regime autoritário e seus efeitos, ao mesmo tempo em que nos apresenta personagens cujas complexidades são desveladas de forma gradual e enigmática. A cada página, somos levados a questionar a natureza daquilo que nos é apresentado, até que, ao virar a última folha, a compreensão plena do enredo se revela quase como uma pintura que só se completa quando o artista dá o último retoque.
A tensão que permeia a história cresce de forma ininterrupta, com cada capítulo intensificando a apreensão do leitor.
À medida que os jornalistas se aproximam da verdade sobre o que ocorre na "Terra Luminosa", a narrativa alcança um clímax arrebatador, desembocando em uma sequência de violência pungente, que, de forma brutal e implacável, espelha as torturas sofridas pelos opositores do regime militar brasileiro. É uma violência que se abate sobre o corpo e a alma, uma violência imposta por um poder imbatível e sufocante.
Ao longo das 176 páginas de "Animais Tropicais", Javier constrói uma obra instigante e perturbadora, marcada por uma prosa envolvente e misteriosa. As imagens que cria têm o poder de se gravar na mente do leitor, como "monstros" literários que transmitem, com precisão aterradora, as feridas abertas da história política e social da América Latina.
Ao mesmo tempo, o autor oferece uma crítica social implacável, que ressoa não apenas no Brasil, mas em qualquer nação que tenha sofrido com os desígnios do autoritarismo.
Em "Animais Tropicais", Javier A. Contreras reafirma seu domínio da narrativa de suspense, equilibrando o terror psicológico com uma reflexão profunda sobre a história e a política latino-americana. O resultado é uma obra que, mais do que entreter, provoca e questiona, deixando uma marca duradoura no leitor.
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