Germán Rodríguez Páez, 58, exaltou a singularidade da Colômbia, país onde nasceu e em cuja capital, Bogotá, reside. Os cidadãos amáveis, diz ele, fazem sorrindo tudo o que se propõem, mesmo que cercados de guerras eternas por domínio de territórios e do terror ao narcotráfico. “La esencia de violencia en Colombia es única”, comenta.
As frases dele são parecidas com as comumente ouvidas sobre o Brasil. Um povo caloroso e feliz, mesmo rodeado por tragédias. Um povo que fala uma língua cantada, arrastada e manhosa. Que come comida “de verdade” - arroz, feijão, carne e frutas. Além do álcool, claro, que esquenta por dentro.
Pessoas que andam em ruas nas quais circulam gente de todas as raças, gêneros, cores e cheiros, em um verdadeiro arco-íris humano; que vivem em cidades construídas em torno de praças com Igrejas pintadas de ouro e cercadas de plantas verdes e de grandes folhas. Locais com “elementos invasores”: palavras com y e w demais, carros asiáticos, celulares americanos, roupas europeias. Cidades vistas como violentas ou traiçoeiras, como Bogotá (COL), ou o Rio de Janeiro (BR), ou Caracas (VE).
Esta descrição se aplica a boa parte dos países latino-americanos - cenários de nossos livros. Nas páginas, revelamos: somos uma profusão do que estava e do que chegou.
A arquitetura e os pontos turísticos são resquícios da colonização e das sobrevivências
Cada nação latina é única, com elementos culturais reconhecíveis ao olhar. Mas, há algo que nos une. Algo que faz jovens leitores se identificarem com obras quase centenárias escritas a milhares de quilômetros de distância.
Livros que não necessariamente falam de coisas “realistas”, mas sim de bebês com rabo de porco, pactos no sertão e contato com espíritos. “É muito fácil você diferenciar a escrita de um autor latino”, disse a estudante de jornalismo Raiza Souza, de 21 anos, em um quase super-poder: o de se ver no país vizinho. De onde vem isso?
A resposta, para os especialistas ouvidos, pode estar justamente no passado, na formação da América, no alicerce das cidades. A magia que aproxima a literatura da América Latina estaria nas dores que carregamos, nas pessoas que perdemos e em tudo que nos foi tirado. Os livros seriam o contragolpe do nosso povo: “respondemos com vida” aos séculos de exploração.
Todos os leitores ouvidos pelo O POVO+ para esta reportagem pegam livros “quando dá”, antes ou depois do trabalho diário. Alguns citaram o trajeto, outros o horário noturno pós-expediente. A leitura, para eles, é um respiro e um escape.
Foram contatadas cinco pessoas, para além dos escritores e especialistas ouvidos. Os leitores são dos seguintes países da América Latina: Brasil, Colômbia, Chile (mas residente do México), Colômbia (mas reside no Brasil) e Peru (mas reside nos Estados Unidos).
Leitores vão do México ao sul do Brasil
As mudanças de país, por motivos de estudo ou trabalho, provocaram choque cultural. Ainda que com aspectos semelhantes, diferenças como o contingente populacional e a economia divergem o Chile do México, por exemplo, segundo os olhos de Rocío Cruz Lathrop. Mesmo assim, ela reconheceu aspectos do país de nascença em histórias orais semelhantes, como a lenda da
Choque enorme foi narrado por Carlos Marcelo Cuadra Rabines, que saiu do Peru para os Estados Unidos. Deparou-se com um país de classe média com alto poder de compra e com uma sociedade menos “cálida y receptiva”, ainda que isso dependa do tamanho da cidade para ele. “Existen muchas limitaciones en cuanto al sistema de salud”, acrescentou ainda, sobre o país do norte.
Um passeio de relatos sobre a literatura latino-americana
A literatura latino-americana, para os ouvidos, possibilita a percepção dos lugares em comum nos países do continente. As “texturas” destes livros, para Rocío Cruz, a permitem quase conseguir sentir cheiros em um ambiente descrito neles, por serem familiares. “O cheiro da umidade e da fumaça de cigarro”, exemplifica.
O escritor e professor Sebastião Guilherme Albano, brasileiro e formado no México, considera que os elementos únicos da literatura latina estão “vinculados à ordem da história e da memória”, aspectos que levam diretamente à violência. Mestre em Letras Latinoamericanas, ele considera esta uma característica “fundacional”, nossa.
Neste sentido, Sandra Beltran-Pedreros, colombiana no Brasil, resumiu a literatura-latina como um grito de “liberdade”. É por meio dela, diz, que questiona-se a injustiça, o preconceito, ao mesmo tempo em que valoriza-se a nossa maneira de absorver o externo.
“Narramos, cantamos, poetizamos nossa força como a resistência para sobreviver, com forte apelo na fé. Diferente aos colonizadores que narram com glória a destruição que eles geraram em outras nações”, completa.
Gabriel Garcia Marquez caminhou pelas mesmas ruas que Germán Rodríguez e Sandra Beltran, os leitores colombianos ouvidos. A colorida e vigilante Bogotá.
Certo dia, o renomado escritor, de cabelos e barbas já embranquecidos, recebeu o Nobel de Literatura. Era 1982, durante o boom dos escritores latinos. Em meio à homenagem, reclamou da injustiça de ser medido com “parâmetros europeus”. Não se limitou, no entanto, apenas à Colômbia, citando um contexto maior.
“A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários”, discursou, com fúria e pesar. Para ele, “a venerável Europa talvez pudesse ser mais perceptiva se tentasse nos ver em seu próprio passado”.
O “nós” de Marques é o povo latino-americano, expressão de origem incerta. Se refere, em suma, aos territórios sob domínio dos países ibéricos — Portugal e Espanha — durante as colonizações dos séculos XV, XVI e XVII.
Somos herdeiros das
A latinidade representa, assim, toda a extensão territorial na qual naus e caravelas brotaram aos montes com navegantes exportadores de pólvora, rodas, cavalos e doenças nunca vistas por aqui.
Registros históricos de exploração são semelhantes nos países da América Latina
Os “dentes apodrecidos” dos europeus, conforme conta o jornalista Eduardo Galeano, sorriram com nosso ouro e prata, dando início à exploração de metais na América. Para isso, escravizaram primeiro os indígenas e, depois, os africanos. Nossos metais já manipulados por astecas e incas, transformados em belos ornamentos, foram derretidos em barras e enviados para perderem-se na Europa.
Os
Açúcar, café, algodão, cacau, borracha. Eram explorados os produtos que os colonizadores escolhessem, mesmo que
Trechos sobre fome na literatura latino-americana
Não vimos sequer as riquezas. Quando o produto desvalorizava, havia o abandono. Ocorreu no Nordeste brasileiro, por exemplo. De rico produtor viramos “periferia”. Após o Caribe ganhar protagonismo no refino do açúcar e ouro ter sido encontrado em Minas Gerais, rapidamente tudo migrou ao Sudeste. Até a capital.
Casos como este percorrem toda a América Latina, expostos nos livros. Os fantasmas da fazenda mexicana abandonada de Pedro Parámo (Juan Rulfo, 1955) e as doenças de sertanejos silenciosos de Vidas Secas (Graciliano Ramos, 1938) são inofensivos se comparados ao terror real.
As cores diversas do nosso povo vêm do sequestros de outros. Milhões e milhões de negros africanos desembarcaram algemados nos territórios em que a exploração pedisse. Em certos casos, a expectativa de vida era de sete anos após a chegada.
O Brasil era muitas vezes o destino final do horror. Por aqui, a escravidão durou três séculos, ou seja, cerca de 15 gerações de africanos sofreram sem nome, futuro ou perspectiva de um dia sequer sem um inferno diário.
Literatura afrobrasileira ajuda a contar nossa história
Enquanto isso, nossa produção abastecia não somente as metrópoles que, por uma má administração econômica, apenas repassavam o recebido para países como a Inglaterra, em processo de industrialização. Máquinas bancadas, em parte, com nossa prata.
Quando nos tornamos independentes e nos aproximávamos do século XX, tínhamos perdido muito da terra para plantar, das riquezas para usufruir e caíamos de paraquedas em uma corrida industrial já avançada. “O rompimento com o passado colonial nas outras questões não existiu. A economia foi mantida praticamente a mesma”, considera a professora Noélia.
Havia ampla desigualdade social e étnica, miséria e abandono. Mesmo assim, a vida continuava. Mais que isso, nos fortalecemos, o que se mostrou na literatura e no medo imposto às grandes potências.
O discurso de Gabriel Garcia Marquez (Gabo) ocorreu quase 500 anos após o desembarque de Colombo. Os anos 1960 e 1970 marcaram um grande sucesso e reconhecimento aos livros latinos. Muitos eram de “realismo mágico”, gênero que pincela elementos fantásticos em cenários mais factíveis e é alvo de suspiros até hoje.
A jovem Raíza, brasileira, disse gostar muito do movimento por considerar “o tipo de literatura que super representa nossa localidade, onde moramos”. “Super me vejo”, disse.
Quase todos os entrevistados disseram o mesmo. Carlos Rabines, nos Estados Unidos, considera Cem Anos de Solidão (Gabo, 1967) um retrato fiel das famílias multigeracionais latinas. “Com seus altos e baixos, tanto em fama e fortuna, como desonra e queda”, diz sobre o livro que narra dilúvios, alquimia e chuvas de flores.
O boom latino-americano do século XX
As pétalas de Macondo, se caíssem na América Latina do lançamento dos livros, cobririam canhões. Por isso, voltamos à revolta de Gabo. “Por que a originalidade nos foi agraciada tão prontamente na literatura e tão desconfiadamente nos foi negada em nossas difíceis tentativas de mudanças sociais?”, reclamou ele.
Isso porque, após a exploração colonial e imperialista, os países latinos compartilharam décadas de autoritarismo simultâneo. Entre 1960 e 1980, período do boom literário, explodiram ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Em Cuba e na Nicarágua, as revoluções foram respondidas com violências e sanções.
A instabilidade política era tão grande que, segundo salienta a historiadora Noélia, alguns países chegaram a ter “quatro ou cinco governos no mesmo ano”.
Ao mesmo tempo, a desigualdade reinava. Em todos os estados latinos, o nível de alfabetização era baixíssimo, o subemprego e o desemprego altos, a industrialização prematura e as moradias precárias.
Toda essa cadeia, da bota de Colombo nas areias do Caribe às crianças subnutridas do século XX e XXI, está denunciada na literatura, assim como os resquícios. Está no apego aos mortos de Isabel Allende, na distopia de Inácio de Loyola Brandão e na pobreza do menino que vive em uma Cabeça de Santo (2019), de Socorro Acioli. É a nossa solidão, ali, visível.
Visível até para nossos vizinhos, nas páginas lidas nas manhãs pré-labuta. “Nas obras brasileiras do Norte e do Nordeste enxergo essa súplica das classes menos favorecidas, dos migrantes, dos nativos da terra, por condições melhores”, considerou a leitora colombiana Sandra Beltran-Pedreros. É o espelho da violência compartilhada.
Histórias de Ditaduras da América Latina e livros que refletem isso
Esses caminhos em comum nos interligam, mas são pontos de encontro. Dali, seguimos — com cicatrizes parecidas — por vias diferentes. As dores da Colômbia são únicas, como salientou o morador Gérman no início da reportagem. As do Brasil, da Bolívia, México, Guatemala e de todos os demais países latinos também são.
As manifestações culturais distinguem-se fortemente de uma localidade à outra: dos tapetes peruanos, às rendas nordestinas e ao sombrero mexicano. Tudo se aparta e, ao longo dos anos, a globalização também levou a algumas mudanças na literatura que, no entanto, segue como um forte grito.
Os elementos fantásticos atormentam os moradores da fictícia Nova Jaguaruara (2017), cidade do livro homônimo de Amaurício Lopes. O escritor fortalezense cita elementos do interior do Ceará e do terror como característicos da literatura dele.
“Eu tinha sempre essa inquietação, quando assistia filmes ou lia livros de fora sentia uma uma carência: não tem uma uma história que se passa aqui no Ceará. Eu, visitando muito o interior na infância, sentia essa falta”, considera. Para ele, livros como os de Stênio Gardel e Socorro Acioli “viciaram” pela identificação.
A literatura latina atual é extremamente diversa, segundo defende. Sempre foi, Amaurício se corrige, mas a influência das redes sociais aumenta não apenas o incentivo aos livros, mas a obras variadas — clássicas ou contemporâneas.
De fato, somente no recorte brasileiro, transitamos de romances regionais como o de Stênio Gardel a livros ambientados na Coreia do Sul, como o de Jesse Mendes. Ambos são autores cearenses. Do Sudeste, o escritor de terror gore Raphael Montes divide prateleiras com os dramas poéticos de Carla Madeira e os romances jovens de Vitor Martins.
A consciência de identidade se expandiu. Somos latinos, mas também mulheres ou homens, LGTBQIAP+ ou héteros; temos raça, classe social e viemos de locais específicos. Tudo isso, para o escritor e professor Sebastião Guilherme Albano formam o bolo da nossa literatura atual, marcada ao mesmo tempo pelas individualidades e pela globalização.
“São outros tipos de comunidade que vão se acentuando como políticas e vão acrescentando uma espécie de universalidade ao dado da latinidade. O idioma é a morada do ser, não tem como desviar do destino (...) mas vivemos em uma visão de mundo globalizada. Mesmo que essa globalização seja pouco equitativa, de alguma maneira temos uma espécie de contemporaneidade com as outras literaturas do mundo”, disse.
A América Latina não se desprendeu das amarras. O nível de alfabetização melhorou, mas segue considerável. Só no Brasil 7% das pessoas, em 2022, não sabiam ler e/ou escrever. Os índices crescem na população negra.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) estagnou-se após a pandemia e, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), também somos afetados pelos cenários de polarização política mundial. É o retorno do autoritarismo que nos perseguiu no passado.
Os resquícios coloniais ainda se expressam nas diferenças regionais, no racismo e nas elites que seguem as mesmas, segundo a professora Noélia.
Apesar disso, seguimos tentando. A América Latina estuda maneiras de volatizar o crescimento econômico, investir na industrialização e em tecnologia, além de brigar por espaço geopolítico em grupos como o G20, o qual presidimos. Tudo, claro, na “marcha lenta”, agarrada às dificuldades do passado.
Já a literatura permanece brilhante e deverá seguir assim. Afinal, não morre fácil o que não padeceu a “enchentes nem pragas, nem fome nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após séculos”, segundo Gabo.
Livros recomendados pelas pessoas ouvidas para esta reportagem
Junto dela, vem a esperança. “Nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta”, diz o escritor.
E completa: “Uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra”.
A representação cartográfica utilizada nesta reportagem remete à obra América Invertida (1948), do uruguaio Joaquín Torres García. O desenho vai de encontro aos mapas clássicos, como o de Mercator, no qual a Europa posiciona-se como "o centro" e os países do sul-global estão distorcidos e diminutos.
Com a rotação, a ponta da América do Sul torna-se o topo do mundo, levando ao questionamento do: por que não? Não há sul ou norte no universo e, se alguém pôde um dia determinar quem está em cima, por que isso não pode ser revertido?
A tese foi justificada, na época, por García. Ele disse: "Tenho dito escola do Sul porque, na realidade, nosso Norte é o Sul. Não deve haver Norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul. Por isso agora colocamos o mapa ao contrário, e então já temos uma justa ideia de nossa posição".
Ao longo do texto foram utilizados trechos do livro As Veias Abertas da América Latina (Eduardo Galeano, 1971), que também serviu de referencial histórico.
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