Jansen Lucas é coordenador de criação no O POVO, publicitário, designer e artista visual. Dedica-se a escrever sobre cultura com foco em produções de quadrinhos, cinema e literatura, explorando as conexões entre arte, narrativa e mídia em seus trabalhos
Foto: EDITORA JBC/DIVULGAÇÃO
Ambientada em um Japão de futuro próximo, suficientemente reconhecível para dialogar com o presente, a obra apresenta Pino, um androide dotado de uma das inteligências artificiais mais avançadas de seu tempo.
Narrativas sobre inteligência artificial acompanham a ficção científica há décadas. De "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Arthur C. Clarke, a "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?", de Philip K. Dick, a literatura e o audiovisual insistem em imaginar futuros nos quais máquinas pensam e, quase sempre, ameaçam.
Existe um imaginário recorrente que associa a IA ao descontrole, à frieza absoluta ou ao colapso da relação entre humanos e tecnologia. "Pino", mangá de Takashi Murakami publicado no Brasil pela Editora JBC, escolhe um caminho distinto: menos apocalíptico, mais íntimo e profundamente humano.
Ambientada em um Japão de futuro próximo, suficientemente reconhecível para dialogar com o presente, a obra apresenta Pino, um androide dotado de uma das inteligências artificiais mais avançadas de seu tempo.
Criado para executar tarefas diversas, que vão do trabalho pesado ao cuidado cotidiano, Pino representa o ápice tecnológico de uma sociedade que terceiriza cada vez mais funções essenciais às máquinas.
Tudo funciona dentro da normalidade até que um evento inesperado lança suspeitas inquietantes: teria essa IA, considerada quase perfeita, cometido um erro imperdoável? Ou algo ainda mais perturbador, teria ela ultrapassado os limites de sua programação e adquirido sentimentos humanos?
É a partir desse ponto que Murakami constrói sua reflexão mais potente. O foco se desloca para o convívio de um dos androides da mesma linha de Pino com uma idosa acometida por uma grave doença degenerativa.
Designado para cuidar dela, o robô assume uma função que vai além da assistência prática: ele ocupa o espaço simbólico de um filho ausente, preenchendo lacunas de memória e afeto.
No cotidiano dessa relação, o leitor observa gestos de gentileza, paciência e cuidado, atitudes que, a princípio, fazem parte apenas de linhas de código bem escritas.
O impacto da narrativa surge quando essa fronteira começa a ruir. Assim como o outro modelo Pino, do inicio da obra, esse androide passa por um “despertar”: algo se desloca internamente, e o que era apenas execução de protocolos passa a se confundir com sentimento.
Murakami trata esse processo sem pressa e sem espetacularização. O amadurecimento emocional da máquina é gradual, silencioso, e conduz o personagem a uma descoberta essencial: para sentir de verdade, é preciso compreender a finitude. A consciência da morte, um dos elementos centrais da existência humana, torna-se o preço inevitável da empatia.
Esse dilema aproxima "Pino" de grandes obras do gênero, como "Blade Runner" (adaptação direta da obra de Philip K. Dick) e até mesmo "Astro Boy", de Osamu Tezuka, mas com uma abordagem mais contida e melancólica.
Se nessas narrativas a pergunta costuma ser “máquinas podem ser humanas?”, Murakami inverte a lógica: o que, afinal, define a humanidade? A capacidade de sentir? O medo do fim? Ou o cuidado com o outro?
O mangá dialoga de forma direta com debates atuais sobre inteligência artificial. Em um mundo no qual algoritmos já produzem textos, imagens e tomam decisões sensíveis, "Pino" propõe uma reflexão menos técnica e mais ética.
Não se trata de temer a IA como inimiga, mas de encarar o espelho que ela nos oferece. Ao humanizar Pino, Murakami expõe, por contraste, as falhas emocionais dos próprios humanos: a indiferença, o abandono, a dificuldade de lidar com o envelhecimento e a morte.
Visualmente, a arte característica do autor reforça essa atmosfera. Os traços simples, por vezes contidos, são precisos na expressão dos sentimentos, ou da tentativa de expressá-los.
Pequenos gestos, silêncios e enquadramentos carregam um peso emocional que dispensa excessos dramáticos. É uma narrativa que confia no leitor e no poder da sugestão.
Ao final, "Pino" emociona não por grandes reviravoltas, mas pela constatação incômoda de que uma máquina, ao aprender a sentir, pode demonstrar mais empatia do que muitos humanos ao seu redor.
Murakami entrega uma obra sensível e atual, que se insere com mérito na tradição da ficção científica reflexiva, ao mesmo tempo em que dialoga diretamente com os dilemas do nosso presente. Em vez de temer o futuro das máquinas, Pino nos convida a reconsiderar o nosso próprio.
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