Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.
Pergunto-me como ele chegou ao vigésimo segundo andar e entrou no apartamento onde moro. Grilos são insetos com quatro asas — é verdade —, que preferem saltar e correr, informação constatada por mim em Guaramiranga e confirmada pela resposta do Google.
Particularmente, nunca vi um deles voar, ao contrário dos gafanhotos, das esperanças e das libélulas, que me parecem seus parentes alados, embora disso não tenha certeza, e me falte disposição para incomodar de novo a IA com dúvidas do tipo. Bastou-me saber sobre a capacidade aérea e conhecer os detalhes da estridulação, nome do processo pelo qual os bichinhos esfregam as patas traseiras nas asas e as asas umas nas outras para chilrear em impressionante volume sonoro.
Voltando à questão inicial, e ciente de que um grilo doméstico raramente voa, compartilho também a perplexidade de uma madrugada insone graças à presença ruidosa debaixo da minha cama. De lá vinha a melodia monossilábica — e não era um samba de uma nota só —, interrompida sempre que procurava, com o foco da lanterna do celular, algum sinal do artista no vão escuro entre o piso e o estrado.
Do esconderijo, retomava os trabalhos, tão logo a luz apagasse, desfazendo a ilusão do seu silêncio. Seguiu-se a noite de um sábado em claro, embalada pela insistência da sílaba metálica. Eis que, no esplêndido alvorecer do domingo, eu o vejo mudo e exposto ao sol da varanda do quarto. “Agora, não me escapa!”, pensei, antes de avaliar que método usaria para me livrar do hóspede incômodo.
Não me ocorreu matá-lo, mesmo que tivesse desejado fazê-lo no auge da insônia imposta. Se fosse um animal peçonhento, um escorpião, uma aranha, haveria justos motivos. Ou ainda uma barata — cujo extermínio dispensa as explicações racionais —, vá lá, mas era apenas um grilo. Assim, quieto, discreto, calado, me pareceu tão inofensiva a sua existência quanto cruel o meu ato de capturá-lo e soltá-lo pela janela para descobrir se ele voa.
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