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O tempo de cada coisa
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Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.

O tempo de cada coisa

É tudo tão bonito nesse percurso que eu, leiga na arte que ela domina, teria parado pelo caminho acreditando que nada melhor poderia vir depois daquela aparência inicial
Tipo Crônica
Flávia Lovatel em seu ateliê de cerâmica @apis.lovatel (Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Flávia Lovatel em seu ateliê de cerâmica @apis.lovatel

Nos 13 graus do inverno petropolitano, realçado por uma frente fria, tomo chá e assisto à minha irmã em seu ateliê. Os vapores das frutas vermelhas perfumam, Vivaldi e Bach escapam do passado pela caixa de som, e eu testemunho o trabalho no torno. A massa rodando e mudando entre os dedos hábeis.

Primeiro aparece um vaso menor, depois cresce, e é outro maior, que ela aperta, conduz, em metamorfose cambiante reiteradas vezes até se abrir na bandeja tirada da terra.

É tudo tão bonito nesse percurso que eu, leiga na arte que ela domina, teria parado pelo caminho acreditando que nada melhor poderia vir depois daquela aparência inicial. Ela, porém, sabe exatamente aonde quer chegar e persiste até encontrar na imperfeição o objeto único, definitivo. Aqui não é a perfeição o que se busca, muito ao contrário.

Há um respeito pela natureza e pelo tempo das coisas. “Não adianta querer brigar contra a argila”, ela diz. “Você sempre vai perder, nunca vai ganhar. A argila escolhe como a cerâmica vai nascer e vai ser.” Quem força a matéria se frustra com rachaduras, imprevistos, entendi.

Diante do contratempo, do fragmento de esponja camuflado no barro e só revelado na parede frágil que sobe, não há salvação, resta amassar tudo, recomeçar. Conheço da literatura o mesmo processo: escrever, reescrever, voltar ao início, mudar palavras por outras mais precisas, fugir das repetições, cortar, refazer.

Tem o tempo da escrita, o da cerâmica e o de cada coisa. O fazer do oleiro, a pintura e a esmaltação, a queima, a retirada do forno e a surpresa com a mudança do tom definida pelo calor.

A alma de uma ceramista aprende a se adaptar ao inesperado, às mudanças constantes alterando o que se planeja, como o seu material de trabalho se deixa transformar.

O resultado de quem cumpre cada etapa traz aos olhos o brilho vítreo de floreiras, vasos, centros de mesa, pratos e da caneca em minhas mãos, quentes pelo chá que bebo, enquanto escrevo esta crônica no bloco de notas do celular.

Meus livros e as peças dela nos aproximam. Somos cada vez mais irmãs em espírito, unidas pelo mesmo olhar para a vida.

Foto do Marília Lovatel

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