Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.
A obra, pintada por volta de 1599 em óleo sobre tela, repousa na Galleria Nazionale d'Arte Antica, em Roma
Foto: Caravaggio
Natura morta con fruta
A primeira vez que uma imagem barroca capturou o meu interesse foi em 1988. Lembro-me perfeitamente. Ela não estava na parede de um museu ou no ambiente sacro de uma igreja mineira, mas na capa de um livro.
“Narciso”, com datação situada no período entre 1597 e 1599, do mestre italiano Michelangelo Merisi, mais conhecido como Caravaggio, agiu sobre mim com a força de um ímã, infalível para arrastar os leitores ao texto. Foi também o meu primeiro contato com um “best-seller”.
Eu, aos 16 anos, então estudante do ensino médio, com bagagem literária insipiente, porém, com a sensibilidade que me valia de modo a não deixar passar despercebido o êxtase diante do belo.
No foco da minha atenção, o jovem protagonista do mito clássico e seu olhar admirado para o próprio reflexo. E o triste desfecho: incapaz de escapar da paixão arrebatadora por si mesmo, ele morre afogado.
Também não consegui me libertar da capa da primeira edição de “O alquimista”, lançado pela Editora Rocco. Por isso, entendo a escolha de Paulo Coelho.
Segundo o teórico renascentista Leon Battista Alberti, o tema atraía especialmente os artistas, razão para afirmar que o inventor da pintura foi Narciso: “O que é a pintura senão o ato de abraçar por meio da arte a superfície da água?”.
A obra, pintada por volta de 1599 em óleo sobre tela, repousa na Galleria Nazionale d'Arte Antica, em Roma. Passados 37 anos desse deslumbramento inaugural, veio a oportunidade de eleger um quadro para compor a capa de meu livro “O despojo do caramujo”, disponível no formato e-book pela Amazon.
E caí de amores por uma natureza morta, intitulada Canestra di frutta. Trata-se de um arranjo com frutas de verão, acomodadas em uma cesta de vime, cuja posição sugere um equilíbrio precário, à beira da superfície que a sustenta. Contra o fundo claro, um pêssego, uma maçã, quatro figos — dois brancos e dois roxos —, um marmelo, quatro cachos de uva — pretas, vermelhas, douradas e brancas.
Diferentemente do que ocorre em “Narciso”, com a sua evidente marca barroca representada no jogo de luz e de sombra, a canestra exige um pouco mais do observador para que ele reconheça a oposição frescor versus decadência da natureza, a ordem harmônica na paralisia e a iminência do movimento, da queda prevista — ou esperada. Na imaginação, antecipamos a cesta virada, as frutas espalhadas, a paz desfeita.
Contudo, surpresa foi descobrir que as duas obras de arte haviam sido executadas pela mão do mesmo gênio, Caravaggio. Talvez não tenha sido coincidência e a explicação esteja nos recônditos do inconsciente.
Quem sabe a primeira, guardada em minha memória juvenil, tenha chamado a segunda, quase quatro décadas depois. Assim, se a capa do meu livro despertar o apetite para a leitura, direi “estava escrito”, “tinha que acontecer”, Maktub – como o alquimista.
A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.