Logo O POVO+
A fresta por onde se pode recomeçar
Foto de Nello Rangel
clique para exibir bio do colunista

Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa

Nello Rangel comportamento

A fresta por onde se pode recomeçar

O que fazer quando ter razão pode destruir relacionamentos.
Tipo Análise

A briga começou de novo. E, quando isso acontece, é quase impossível parar. É sempre assim. Por qualquer coisa - na maior parte das vezes por um entendimento equivocado de algo que foi dito - as ofensas e grosserias se iniciam e contê-las é tarefa quase impossível. Sabe-se o final: a exaustão vence Eduarda, que se entristece terrivelmente. E João permanece irritadíssimo, e seguro de que tem razão, ainda por dias ou semanas, nas quais o casal mal trocará palavra. Isso se não voltar a brigar de novo.

Pintura "A Fresta"(Foto: Nello Rangel )
Foto: Nello Rangel Pintura "A Fresta"

Brincadeira, né? Achar que ter ou não ter razão presta para alguma coisa. René Descartes resolveu esse imbróglio já há uns 500, mas parece que ninguém contou pra gente. Inicia seu “Discurso Sobre o Método”, um dos livros mais importantes da história da filosofia, com o parágrafo: "O bom senso (ou a razão, preferem alguns...) é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.”

É um bom texto para se iniciar uma psicoterapia de casal. Casal que procura tratamento normalmente já chega brigando. Um acusa o outro com uma facilidade impressionante. Quando a coisa parece fora de controle, leio o parágrafo acima. E digo que, isso posto, todos os presentes à entrevista podem considerar que têm razão a priori. O marido, a esposa, o namorado, a namorada, e até o terapeuta presente na sessão, têm razão. E que isso não será discutido na terapia. Pois nunca se viu ninguém rezar para Deus tirar seu excesso de razão: - Oh, senhor, tira um pouco da minha razão, sempre sou eu que a tenho... Brigar para ter razão é brigar por um trono vazio.

A esposa estava bem alterada. Quase gritando elencava muitos motivos para sua raiva, desespero e frustração. Alguns desses bem que se adequavam aos problemas que o casal precisaria resolver. Mas o tom alto com o qual falava e, principalmente, a dureza dos argumentos que usava, faziam com que o marido emudecesse. Sentia que nada do que dissesse resolveria alguma coisa. Pelo contrário, pioraria. Sentia raiva, muita. Sentia também dor e tristeza.

Pensava em como se separar com meninos tão pequenos, se desesperava ao pensar no sofrimento deles. Mas, para piorar, sabia que eles já deviam estar sofrendo com esse clima malsão em casa. E foi assim, quando o marido já alcançara o auge da desesperança, que a esposa colocou certa frase no meio de tantos impropérios: - Fulano, eu gosto muito de você, mas...  E continuou falando no mesmo tom e com o mesmo tipo de argumento que vinha usando antes. Mas algo já acontecera. O marido estancara naquela frase.

-Mas..., ela ainda gosta de mim?
Agora ele conseguia escutar alguma coisa e entender, ao menos em parte, a solidão da esposa em seu desespero.

A ciência da convivência é sutil e cheia de reentrâncias.

Os objetos coexistem. Os animais, pelo menos em sua esmagadora maioria, coexistem. Seres humanos convivem. Mais do que isto: seres humanos precisam conviver para se tornarem humanos. E conviver é diferente de coexistir. Em primeiro lugar na convivência as pessoas envolvidas interferem, verdadeiramente, uma na outra. Modificam-se mutuamente. Após o encontro não são mais as mesmas.

Em segundo lugar, na convivência não é preciso que as pessoas envolvidas concordem uma com a outra. Conviver é enxergar tudo, as concordâncias e as discordâncias, as semelhanças e as diferenças, as aproximações e os distanciamentos. É não buscar a homogeneidade nem a unanimidade. E não ter pressa diante do encontro.

O marido acima já estava trancando com sete chaves a porta da convivência quando escutou: "Eu gosto muito de você, mas...”. E foi suficiente para que ele destrancasse a porta e a deixasse aberta. Foi como se a esposa tivesse colocado o pé na porta que estava se fechando, permitindo assim alguma abertura, alguma brisa passando por essa fresta.

As brigas entre Eduarda e João chegaram ao nível do insuportável, Eduarda já pensava em como fazer para separar-se. João já deixara claro que não abriria mão do filho. E eram de cidades distantes, o que dificultaria bastante a separação. Eduarda desabafa com um amigo de João, em busca de conselho. Ao saber, João indigna-se, sente-se exposto. É bem verdade que quem mais explode, quem mais vê intenções hostis em qualquer afirmação, quem mais se mostra impermeável a qualquer abordagem, é ele. Ainda assim vai conversar com o amigo, na expectativa de provar alguma coisa, de mostrar como são justificadas suas atitudes agressivas. O amigo lhe surpreende: - João, Eduarda te ama demais... (A fresta se abre na porta, dá pra sentir a brisa entrando...).

Algumas horas depois, ainda sem saber da conversa, Eduarda tenta uma nova aproximação. Liga e pergunta se pode buscá-lo no trabalho com o filho, nesta tarde de sol. Moram na praia, poderiam distrair um pouco o menino. Ele topa. O encontro é bom, ela toma sol, ele nada com o filho pequeno. Voltam para casa em outro clima. Quando chegam Eduarda percebe, aterrorizada, que esquecera a porta de casa aberta. Isso já havia acontecido antes. João sempre explodia, achava um absurdo esse descuido. Ele vê a porta escancarada. Olha para ela. E diz: - Estava com saudades, né?

 

Foto do Nello Rangel

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?