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O Ser Gaiano: do indivíduo ao self ecológico
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Bióloga e mestre pela Universidade Federal do Tocantins, Raquel da Silva Acácio possui mais de 15 anos de experiência em gestão ambiental, coordenação de equipes multidisciplinares e condução de programas de monitoramento de fauna, flora e ecossistemas aquáticos na Amazônia e no Cerrado. Na Fazenda do Futuro e no Hotel EcoAraguaia, atua na interface entre ciência, regeneração e gestão territorial, promovendo modelos inovadores de convivência entre natureza, comunidades e economia local — onde liderança e cuidado caminham lado a lado, como expressão viva de amor pela Terra.

O Ser Gaiano: do indivíduo ao self ecológico

Este artigo inaugura a Parte II da série Economia Profunda
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Fazenda do Futuro (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Fazenda do Futuro

Este artigo inaugura a Parte II da série Economia Profunda. Enquanto a Parte I apresentou os fundamentos — o chamado, as raízes e o sentido da nova economia — esta segunda etapa volta-se ao humano. A pergunta agora é outra: quem é o sujeito capaz de sustentar uma economia alinhada com a vida? O Ser Gaiano surge como essa figura central, conectando os fundamentos da nova consciência às práticas vivas que moldam a Fazenda do Futuro.

Há momentos raros na existência em que algo se reorganiza dentro de nós com a naturalidade de um rio
que volta ao seu curso. Não é um pensamento novo, nem uma descoberta analítica. É uma lembrança
biológica, profunda, silenciosa.

Uma memória que emerge para dizer: nunca estiveste separado da vida. Nesse instante, o mundo ganha outra espessura. A Terra deixa de ser cenário e se revela como corpo vivo, como parentesco, como relação contínua entre organismos, ciclos e fluxos. É aí que nasce o Ser Gaiano.

Ser Gaiano é a expansão da identidade humana para além da ilusão da pele. É reconhecer que viver não é existir de forma isolada, mas participar ativamente de um organismo maior, dotado de autorregulação, inteligência sistêmica e capacidade de regeneração.

Gaia não é metáfora: é uma realidade biofísica. A água que percorre nossas veias é a mesma que evapora, precipita e alimenta rios e aquíferos. O ar que inspira nossos pulmões já circulou por florestas, solos e oceanos. O alimento que nos sustenta carrega bilhões de anos de evolução, simbiose e adaptação.

Essa mudança de percepção é o fundamento humano da Economia Profunda. Se esse novo paradigma nasce de uma transformação de consciência, então tudo começa com o reconhecimento dessa consciência
ecológica ampliada — a percepção que atravessa o indivíduo e se enraíza no tecido da vida.

O Ser Gaiano é o humano que fez a travessia da separação para a interdependência. Porque a Economia Profunda não é, em sua essência, um novo modelo econômico: é um novo modo de ser.

Esse modo de ser encontra terreno fértil na Fazenda do Futuro, cujas sete dimensões oferecem práticas
concretas que educam, expandem e enraízam essa consciência: Agricultura e Pecuária Regenerativa, EtnoEcoTurismo, Escola Floresta, Espiritualidade, Corredores Ecológicos, Energias Renováveis e Empreender em Rede.

Cada uma dessas dimensões atua como um sistema pedagógico vivo, onde teoria e prática se encontram no território.

Entre todas as dimensões, a Escola Floresta ocupa um lugar central. Ela não é uma escola sobre natureza, mas uma escola com o território. Uma escola sem paredes, na qual o currículo pulsa na paisagem e a pedagogia emerge da convivência.

A Fazenda do Futuro torna-se um dos círculos vivos dessa aprendizagem, uma espécie de laboratório em que crianças, jovens e adultos experimentam a vida não como conceito, mas como experiência direta.

Os corredores ecológicos, por exemplo, expressam de forma clara o princípio gaiano da conectividade. Ao
restaurarem fluxos de fauna, flora e genes, eles ampliam a resiliência da paisagem e reduzem os efeitos da fragmentação — lembrando que a vida prospera quando há continuidade ecológica.

Da mesma forma, as energias renováveis integradas ao território alinham o metabolismo humano ao metabolismo da Terra, reduzindo a dependência de fontes entrópicas e respeitando os limites biofísicos dos sistemas naturais. É nesse ambiente que o gene do Ser Gaiano se forma com naturalidade.

Mas o território externo só se torna caminho pleno quando encontra o território interno. É aqui que a dimensão da espiritualidade revela seu papel essencial. Não se trata de dogma ou crença; trata-se de
presença. De silêncio que afina os sentidos. De autoconhecimento que nos devolve ao centro. De práticas
que integram corpo, emoção, ancestralidade e intuição.

A espiritualidade é a musculatura invisível do Ser Gaiano. Sem ela, não há enraizamento. Sem ela, a
interdependência vira conceito; não se encarna. Ela é o eixo que alinha interioridade e território, percepção
e ação.

E há ainda a dimensão de Empreender em Rede, onde o Ser Gaiano aprende a agir no mundo real — não a
partir da competição, mas da cooperação; não a partir do controle, mas da abertura ao desconhecido.

Empreender em Rede é praticar o interser na dimensão social. É confiar na inteligência coletiva. É permitir que o futuro seja obra de muitas mãos.

Quando essas dimensões se encontram, nasce a arquitetura humana capaz de sustentar a Economia
Profunda. Uma pessoa que sabe pertencer ao território. Que sabe pertencer a si. E que sabe pertencer ao outro.

Esse é o Ser Gaiano. Um ser humano capaz de perceber a Terra não como recurso, mas como sistema vivo
do qual faz parte. Que age não por separação, mas por comunhão. Que carrega, no corpo e na consciência, a memória da vida que quer continuar.

Quando o Ser Gaiano desperta, a Economia Profunda deixa de ser ideia e se torna prática. A economia passa a ser cuidado. O trabalho passa a ser serviço. A inovação passa a ser relação. O futuro passa a ser responsabilidade amorosa. E o humano, enfim, lembra aquilo que nunca deixou de ser: Gaia em forma
humana, em consciência e em cuidado.

Esse é o Ser Gaiano. Um ser humano que reconhece a Terra não como recurso, mas como sistema vivo do qual faz parte. Que age não por separação, mas por comunhão. Que carrega, no corpo e na consciência, a memória da vida que quer continuar.

Foto do Raquel Acácio

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