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"Os Malês" são um mergulho na cultura brasileira
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Sou jornalista de formação. Tenho o privilégio de ter uma vida marcada pela leitura e pela escrita. Foi a única coisa que eu fiz na vida até o momento. Claro, além de criar meus três filhos. Trabalhei como repórter, editora de algumas áreas do O POVO, editei livros de literatura, fiz um mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará (UFC). Sigo aprendendo sempre. É o que importa pra mim

"Os Malês" são um mergulho na cultura brasileira

Filme "Os Malês" resgata o maior conflito negro da história brasileira. A revolta dos Malês, na Bahia, na obra de Antônio Pitanga revela traços apagados da cultura nacional
Antônio, Camila e Rocco Pitanga estrelam "Malês" (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Antônio, Camila e Rocco Pitanga estrelam "Malês"

Faz pouquíssimo tempo que fiquei sabendo sobre o impacto dos mouros na cultura brasileira e percebi o que, de fato, significa o que se chama “apagamento cultural”. Tudo começou quando meu marido decidiu estudar as reminiscências ibéricas na música do Elomar.

Não tardou muito, ele me falou do terrível incômodo que passou a sentir: “Como é que eu, um homem negro, decido estudar a música de um branco, que canta reino de branco e, ainda por cima, se duvidar teve antepassados escravistas?”.

Enquanto duraram as aulas e a escrita da dissertação, fui acompanhando a mudança do contexto da música do Elomar, que da Ibéria, se deslocou para a cultura moura, de origem bérbere, dos povos norte-africanos que viveram na Europa até serem expulsos, em 1492, pelos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

Muita coisa que chegou ao Brasil como herança europeia que vão dos musicais de cantadores, festas populares juninas, o reisado, o pastoril, a festa do Divino têm raízes mouras, ou seja africanas e não europeias puras.

“Esconder ou não levar em conta uma cultura milenar, como a cultura moura, torna-se um ato político”, escreveu meu marido no texto que ele defendeu e só então percebi o quanto podemos desconhecer nossa própria cultura. “A desvalorização da cultura moura é um eco da depreciação dos africanos perpassada pelos ibéricos desde a expulsão dos mouros”, completa.

Praticamente todos os nomes cultura brasileira desde Gilberto Freyre a Mário de Andrade, de alguma forma, lembram o fato, mas sem nenhum aprofundamento. Um dos raros livros sobre o tema é o de Luis Soler ao estudar a influência árabe no sertão nordestino.

Semana passada, assistimos ao filme “Malês”, de Antônio Pitanga, que pôs na tela a revolta dos Malês na Bahia no século XIX. Um desses momentos raros, quando a gente vê a história profunda do Brasil, de raízes negras, no cinema. O projeto de Pitanga demorou 29 anos para se concretizar, mas ainda bem que vimos o filme.

Meu marido comentou comigo quando saímos do cinema: "Agora, temos nosso 'Doze anos de solidão'", em referência ao filme que retrata a escravidão norte-americana. Foi ótimo ver roteirista e diretor enfrentarem a questão religiosa para contar a história malê, porque no fim das contas, a disputa entre cristãos e mulçumanos complementa as causas do apagamento cultural mouro que resiste a ferro e fogo, um acréscimo de ponta à questão negra.

Meu marido se manteve estudando a música de Elomar, mas numa outra perspectiva, a moura. É bonito ver uma pessoa refletindo e se deslocando intimamente, do ponto de vista cultural, a partir do conhecimento. Um homem negro que passa a ver as coisas em redor por um olhar mais amplo do que o que foi ensinado a vida inteira. Saiu da Europa, retornou à África.

Foto do Regina Ribeiro

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