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Doutoras do povo preto: o verbo ser de Valéria e Verônica no Cariri
Reportagem Seriada

Doutoras do povo preto: o verbo ser de Valéria e Verônica no Cariri

Verônica é devota de Nossa Senhora da Apresentação porque gosta de se apresentar. Para Valéria, aquilombar-se é se juntar em torno de uma causa pela necessidade de se manter vivo. Juntas, as irmãs pregam o amoração como compromisso político puxado pela miolagem — o ato de conversar miolo de pote. Porque o que há no miolo do pote é vida
Episódio 51

Doutoras do povo preto: o verbo ser de Valéria e Verônica no Cariri

Verônica é devota de Nossa Senhora da Apresentação porque gosta de se apresentar. Para Valéria, aquilombar-se é se juntar em torno de uma causa pela necessidade de se manter vivo. Juntas, as irmãs pregam o amoração como compromisso político puxado pela miolagem — o ato de conversar miolo de pote. Porque o que há no miolo do pote é vida
Episódio 51
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Poderia ser uma história contada em torno da fogueira sob o céu estrelado de mais uma noite encantada do Cariri cearense. Mas essa tinha o brilho de um fogo ancestral, aquele que nunca se apaga. Do lado de fora, o vento da Chapada do Araripe trazia o perfume das flores. Dentro, retumbavam os tambores e aplausos que pareciam chuva.

No Salão de Atos da Universidade Regional do Cariri (Urca), no Crato, a mais de 500 quilômetros de Fortaleza, duas mulheres pretas eram coroadas, reconhecidas e exaltadas em sua grandeza.

Na cabeça, turbantes com estampas étnicas de África embelezavam aquele momento. Enquanto as irmãs Valéria Gercina das Neves Carvalho e Verônica Neuma das Neves Carvalho, de 67 anos, subiam ao palco para receber o título de Doutoras Honoris Causa, a plateia entoava um grito que dizia tudo: “doutoras do povo preto”.

As irmãs Valéria e Verônica Carvalho — Verônica, primogênita por cinco minutos de diferença, é a que está sem óculos; Valéria, a mais nova, usa óculos. Duas mulheres pretas que transformaram o Cariri com a força da palavra, da escuta e do afeto(Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/URCA)
Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/URCA As irmãs Valéria e Verônica Carvalho — Verônica, primogênita por cinco minutos de diferença, é a que está sem óculos; Valéria, a mais nova, usa óculos. Duas mulheres pretas que transformaram o Cariri com a força da palavra, da escuta e do afeto

O título, aprovado por unanimidade e entregue pela primeira vez a duas mulheres negras no dia 24 de setembro de 2025, reconheceu uma trajetória de décadas dedicadas à luta antirracista, à educação popular e à afirmação da negritude no Ceará.

Verônica, bióloga e assistente social, e Valéria, pedagoga, trazem suas formações acadêmicas para o cotidiano como educadoras populares que partilham o saber pela oralidade, pela escuta e pelo afeto.

São guiadas pelos ensinamentos dos antepassados e pela esperança nas futuras gerações, por isso detentoras de um conhecimento que ultrapassa os muros brancos da universidade.

Fruto de uma reivindicação histórica de movimentos antirracistas do Brasil e de diferentes países do mundo que acompanham a vida das homenageadas, a cerimônia de doutoramento tornou-se uma grande festa de celebração da ancestralidade, da força feminina, da intelectualidade negra e da beleza de existir.

A emocionante solenidade aconteceu, a pedido delas, durante o XVI Congresso Internacional Artefatos da Cultura Negra, no campus Pimenta, acompanhada por professores, estudantes, grupos de cultura popular, povos de terreiro, comunidades quilombolas e pela família Neves Carvalho.

Para elas, não haveria outro lugar para receber a maior honraria que uma universidade pode conceder senão em um espaço que celebra o povo preto como potência e une o conhecimento científico ao popular.

Descendentes de quilombolas originários do Piauí, as gêmeas Verônica e Valéria nasceram em Crato, no Cariri cearense, onde vive a família Neves Carvalho(Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca)
Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca Descendentes de quilombolas originários do Piauí, as gêmeas Verônica e Valéria nasceram em Crato, no Cariri cearense, onde vive a família Neves Carvalho

“O Congresso Artefatos da Cultura Negra é um espaço de construção coletiva que estamos dentro desde sempre. Talvez o maior no Brasil. Não teria sentido receber em qualquer outro espaço senão nele. É um evento que fala de nós, povo preto, como potência. Que reúne grandes referências da diáspora acadêmica e localmente. Que faz o casamento entre o conhecimento científico e o empírico. Não podia ser noutro lugar”, frisa Verônica.

Valéria reforça a alegria e a honra de receberem essa titulação: “Esse título amplia o nosso compromisso. Agora, mais do que nunca, precisamos nos aquilombar com a comunidade acadêmica. Enquanto doutoras dessa universidade, a questão da extensão vai carecer de nós um olhar cuidadoso. A permanência dos estudantes também carece de condições estruturais como transporte e bolsa. Vai dar certo: é pé dentro e pé fora”.

Mas quem são essas mulheres que, como duas passarinhas, espalham sementes que vingam fortes e trazem os frutos do bem viver?


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Para ler sobre temas ligados à raça, à diversidade e aos direitos humanos, acesse a coluna do jornalista Rubens Rodrigues

 

 

Raízes do baobá: o terreiro, a miolagem e a amoração

A árvore da vida é olhada com ternura e tocada com reverência por Verônica. Suas raízes representam os ancestrais e as memórias da comunidade, enquanto os troncos são as crianças e jovens em crescimento.

Repleto de significados, o baobá foi plantado, nasceu, floresceu e já dá frutos. No solo sagrado, é a árvore mais importante do Terreiro das Pretas.

Valéria explica o porquê: “É o que vai ficar para além de nós. Quando a gente se encantar, ele vai estar lá, centenário, testemunhando a existência de um povo que veio de longe, de além-mar”.

O título de doutor honoris causa é a mais importante homenagem que uma universidade pode prestar a alguém. A honraria é concedida apenas a personalidades que se destacam nas suas áreas de atuação. Honoris causa significa "por causa da honra"(Foto: Nívia Uchôa)
Foto: Nívia Uchôa O título de doutor honoris causa é a mais importante homenagem que uma universidade pode prestar a alguém. A honraria é concedida apenas a personalidades que se destacam nas suas áreas de atuação. Honoris causa significa "por causa da honra"

As irmãs nasceram em 3 de janeiro de 1958, filhas de Luiz de Carvalho e Gilbertina das Neves Carvalho; netas de Cicero Luiz de Carvalho e Josefa Cândida de Jesus (paternos) e de Josefa Maria das Neves e Fernando José das Neves (maternos).

São descendentes do povo quilombola remanescente do Saco dos Cansanção, do sertão de Araripina (PE).

Foi no quintal da casa de taipa da família, no distrito de Santa Fé, zona rural do Crato, que elas aprenderam, de forma orgânica, o que é raiz, reza e fogo que não apaga.

Verônica Neuma das Neves Carvalho (à esquerda) e Valéria Gercina das Neves Carvalho (à direita) foram propulsoras do movimento de mulheres no Cariri e responsáveis, junto com outros ativistas, pela criação do Grunec (Grupo de Valorização Negra no Cariri)(Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará)
Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará Verônica Neuma das Neves Carvalho (à esquerda) e Valéria Gercina das Neves Carvalho (à direita) foram propulsoras do movimento de mulheres no Cariri e responsáveis, junto com outros ativistas, pela criação do Grunec (Grupo de Valorização Negra no Cariri)

O lugar virou o Terreiro das Pretas, casa-escola reconhecida pelo Ministério da Cultura como Pontão de Cultura. É residência da família Neves Carvalho, fundadora do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec), referência da militância na região desde 2001.

Lá, ainda pequenas, as gêmeas descobriram com o avô a arte de “miolar” — o ato de conversar “miolo de pote”.

“Ele juntava os filhos e os netos para contar histórias e dizia: vamos conversar miolo de pote! E a gente dizia: mas vovô, no pote não tem miolo. Ele ressignificava tudo isso: como não tem miolo, se o pote está cheio de água? Água é o que? É vida. E se tirar a água, o ponte continua cheio ou vazio? Continua cheio. Cheio de que? De ar. Ar também é vida. Então, conversar miolo de pote é conversar sobre a vida, é conversar sobre a nossa vida vivida”, conta Verônica, irmã mais velha por cinco minutos de diferença.

Verônica e Valéria promovem atividades de conscientização política na casa onde moram, o Terreiro das Pretas, localizado na Chapada do Araripe e reconhecido pelo Ministério da Cultura como Pontão de Cultura(Foto: Grunec)
Foto: Grunec Verônica e Valéria promovem atividades de conscientização política na casa onde moram, o Terreiro das Pretas, localizado na Chapada do Araripe e reconhecido pelo Ministério da Cultura como Pontão de Cultura

“Uma das potências da miolagem é, sem dúvida alguma, o afeto nos dois sentidos. Primeiro no sentido da amorosidade; em seguida por promover, de maneira muito simples, a inclusão. As pessoas logo se percebem parte do processo. Interagem de maneira muito leve. Compreendem suas potencialidades nas diferenças. Percebem que todo o conhecimento é importante e que não tem um maior que outro, apenas diferente”, reflete ela.

O bem viver de que tanto falam não está desconectado dos conflitos. Conforme defende Valéria, “nas diferenças aprendemos”. “A nossa meta sempre foi dialogar. Não podemos perder essa capacidade.”

“A escuta é fundamental. Escutar a si, a natureza, o ambiente. Hoje em dia as pessoas são muito ansiosas, falam muito. O barato da vida é escutar. Escutar até o silêncio. Tudo na vida é ensinamento. Aprende quem tem juízo. Se juntem e escutem uns aos outros”, aconselha.

Verônica é bióloga e assistente social, enquanto Valéria é pedagoga. As irmãs atuam pelo enfrentamento da violência contra a mulher e pela luta antirracista no Cariri há mais de 20 anos, com valorização das heranças africanas e educação popular(Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará)
Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará Verônica é bióloga e assistente social, enquanto Valéria é pedagoga. As irmãs atuam pelo enfrentamento da violência contra a mulher e pela luta antirracista no Cariri há mais de 20 anos, com valorização das heranças africanas e educação popular

A primogênita brinca que é devota de Nossa Senhora da Apresentação porque gosta de se apresentar.

“Somos pessoas com personalidades, pontos de vista, perspectivas distintas. Ocorre que somos filhas do mesmo pai e da mesma mãe, portanto, recebemos orientações para a vida muito semelhantes. De pequena, aprendemos o que é solidariedade, partilha, cumplicidade, respeito. Então, estes são valores que não abrimos mão desde muito tempo. Ademais, o fato de sermos irmãs gêmeas já indica uma conexão. Sabemos que sempre vamos poder contar uma com a outra. É orgânico pra nós. Faz parte.”

Para Valéria, aquilombar-se é se juntar em torno de uma causa pela necessidade de se manter vivo. “O aquilombar é para além do juntar. Precisa confluenciar numa mesma direção, no caso o bem viver. Desde muito cedo, aprendemos que somos capazes de aprender, inclusive a gostar do que se faz. Fazer o que se gosta é privilégio de poucas pessoas nesta sociedade.

A “amoração”, conceito criado por elas, é amor que não desarma a luta. Essa filosofia guia suas caminhadas(Foto: Nívia Uchôa)
Foto: Nívia Uchôa A “amoração”, conceito criado por elas, é amor que não desarma a luta. Essa filosofia guia suas caminhadas

Juntas, as irmãs pregam o amoração como compromisso político puxado pela miolagem. Desde sua criação, o Grunec, sob a liderança delas, trava batalhas cruciais pelo controle social de políticas públicas e tensiona governos para que avancem no combate ao racismo.

O grupo teve papel fundamental na construção do curso de Educação na Urca e na elaboração do programa Pibid Diversidade para o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) de Juazeiro do Norte.

Em 2010, em parceria com a Cáritas Diocesana do Crato, Verônica e Valéria organizaram o mapeamento das comunidades quilombolas e rurais negras do Cariri, uma ação que mostrou a existência e a história do povo negro no Ceará, a chamada “terra da luz”.

Em documento entregue à Reitoria da URCA em janeiro de 2024, coletivos e referências da luta antirracista destacaram que Verônica e Valéria são detentoras de um conhecimento que ultrapassa os muros da universidade, trazendo contribuições fundamentais para a academia, para as comunidades locais e para toda a sociedade brasileira(Foto: Divulgação/Urca)
Foto: Divulgação/Urca Em documento entregue à Reitoria da URCA em janeiro de 2024, coletivos e referências da luta antirracista destacaram que Verônica e Valéria são detentoras de um conhecimento que ultrapassa os muros da universidade, trazendo contribuições fundamentais para a academia, para as comunidades locais e para toda a sociedade brasileira

De forma contínua, as educadoras mantêm diálogo com instituições de ensino e órgãos públicos para o desenvolvimento de atividades formativas relacionadas ao saber negro, como o evento Artefatos da Cultura Negra, de caráter acadêmico, voltado à formação de professores.

No Terreiro das Pretas, Verônica e Valéria fazem desse aquilombamento uma escola aberta de saberes, fazeres e sabores.

Lá, promovem oficinas, rodas de conversa e eventos que conectam ancestralidade, agroecologia e justiça ambiental, sempre com a premissa de que construir felicidade é um projeto coletivo.

 

 

“A luta delas é encarnada no corpo, na casa, na rua, no quintal”

Para a professora Cícera Nunes, proponente do título e coordenadora do Congresso Internacional Artefatos da Cultura Negra, a honraria concedida a Verônica e Valéria é o ápice de um movimento muito maior.

Ela frisa que a iniciativa não foi individual, mas uma ação coletiva robusta, que uniu pesquisadores antirracistas, movimentos sociais, coletivos de juventude e lideranças quilombolas do Cariri, do Ceará, do Brasil e do exterior.

“O grupo que encaminhou essa proposta é um grupo grande”, reforça, explicando que o objetivo era reivindicar da Urca, a universidade mais antiga da região, o reconhecimento dos saberes produzidos pelo movimento negro no território.

“Doutoras do povo preto”: o grito ecoou no auditório lotado, celebrando uma trajetória de décadas dedicadas à educação e à luta antirracista(Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca)
Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca “Doutoras do povo preto”: o grito ecoou no auditório lotado, celebrando uma trajetória de décadas dedicadas à educação e à luta antirracista

A concessão do título, segundo Cícera, foi um ato histórico por duas razões: foi a primeira vez na história da Urca que o reconhecimento foi feito a mulheres negras e, no contexto nacional, a primeira vez que irmãs gêmeas receberam tal honraria. Mas o simbolismo vai além.

“Nosso desejo é que, a partir desse ato, as pessoas que fazem a universidade se comprometam com a implementação das políticas antirracistas”, declara.

Cícera descreve as irmãs como figuras que transitam por todos os campos do conhecimento, da saúde à segurança pública, com um profundo entendimento sobre a existência do povo negro.

No salão lotado da URCA, tambores e aplausos se misturaram à chuva de emoção: o povo preto coroava as Doutoras Honoris Causa do Cariri(Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca)
Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca No salão lotado da URCA, tambores e aplausos se misturaram à chuva de emoção: o povo preto coroava as Doutoras Honoris Causa do Cariri

Elas tensionam a academia ao propor uma outra concepção de educação, que não enxerga a universidade como único lugar legítimo de saber, mas valoriza os terreiros e os mestres da cultura popular.

No centro de tudo, está o afeto. “É impossível você estabelecer relação com Valéria e Verônica e não ser afetado na dimensão do afeto, do amoração, da disposição que elas carregam para o acolhimento”, revela.

Para ela, a filosofia das irmãs pode ser definida em uma palavra que elas mesmas usam: “amoração, que é amar sem perder a perspectiva da luta”.

A escuta é central em suas práticas. “Escutar a si, o outro e até o silêncio. Tudo na vida é ensinamento”, diz Verônica(Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará)
Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará A escuta é central em suas práticas. “Escutar a si, o outro e até o silêncio. Tudo na vida é ensinamento”, diz Verônica

O primeiro contato da professora Roberta Piancó, pró-reitora de Administração da Urca, com a trajetória das irmãs foi durante o mapeamento das comunidades negras e quilombolas do Cariri, em 2010.

Anos depois, ao visitar diversas dessas comunidades para outro projeto, ela testemunhou o impacto do trabalho das gêmeas.

“Onde a gente chegava, o nome delas era exaltado”, conta. “Sempre foi muito exaltado o trabalho de militância, de apoio, de mobilização e de incentivo à luta pelo reconhecimento do território”.

Pela primeira vez, a Universidade Regional do Cariri concedeu o título de Doutoras Honoris Causa a duas mulheres negras(Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará)
Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará Pela primeira vez, a Universidade Regional do Cariri concedeu o título de Doutoras Honoris Causa a duas mulheres negras

Quando a proposta do título chegou ao Conselho Universitário, Roberta atuou como relatora. Ela descreve o processo como rápido e a aprovação, unânime, como um reflexo do reconhecimento que as duas já possuem na região, tanto nas comunidades quanto na academia.

A cerimônia de outorga, segundo a professora, foi uma das mais emocionantes da história da Urca.

O auditório lotado, os tambores, os gritos de “doutoras do povo preto”, o cortejo com grupos culturais e o discurso inovador das irmãs, em formato de “jogral”, criaram uma atmosfera inesquecível.

“Pé dentro, pé fora”, disse Valéria, ao reafirmar o compromisso de levar a universidade até onde o povo está(Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca)
Foto: Elizangela Santos/Diego Monteiro/Urca “Pé dentro, pé fora”, disse Valéria, ao reafirmar o compromisso de levar a universidade até onde o povo está

“Eu acho que não teve uma pessoa que não tenha derramado uma lágrima. Foi bem emocionante, bem tocante”, lembra.

Ela ressalta que a fala do reitor Carlos Kleber de Oliveira foi memorável ao definir a concessão do título como uma “reparação histórica” da universidade para com o povo preto, historicamente excluído da educação. A honraria, para ela, é diferente de todas as outras.

“Já entregamos títulos para várias pessoas importantes, como Gilberto Gil, por exemplo. Mas é diferente você dar um título para uma pessoa que é do território, que é nossa, como a gente diz, é do nosso chão.”

“Conversar miolo de pote é conversar sobre a vida”, ensinava o avô. Desde então, as gêmeas nunca pararam de miolar(Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará)
Foto: Zé Rosa Filho/Defensoria Ceará “Conversar miolo de pote é conversar sobre a vida”, ensinava o avô. Desde então, as gêmeas nunca pararam de miolar

Como cineasta e ativista, Nívia Uchôa vê em Verônica e Valéria a materialização de uma luta que não se limita à teoria. “A luta delas é encarnada no corpo, na casa, na rua, no quintal”, afirma.

Por toda essa inserção, Valéria e Verônica protagonizaram o documentário Verbo Ser, filme sobre a violência contra as mulheres caririenses. O longa, dirigido por Nívia, foi exibido na Mostra Olhar do Ceará de Longa-metragem do 35º Cine Ceará, em setembro de 2025.

Ao filmá-las, a cineasta se aprofundou na filosofia da “miolagem”: “Percebi que ‘miolar’ pode ser uma chave filosófica”.

No documentário Verbo Ser, da cineasta caririense Nívia Uchoa, Verônica e Valéria conversam sobre a vida e sobre seu papel na militância na região(Foto: Nívia Uchôa)
Foto: Nívia Uchôa No documentário Verbo Ser, da cineasta caririense Nívia Uchoa, Verônica e Valéria conversam sobre a vida e sobre seu papel na militância na região

“Não é só pensar, é pensar de outro modo: é criar reflexões a partir das suas vozes, do seus corpos, da brincadeira, da coletividade.”

Nívia percebe que essa é uma arte herdada que subverte a lógica acadêmica e prova que o pensamento potente também está na “fala do povo”.

O cuidado que uma tem com a outra, a forma como compartilham dores e alegrias, é, em si, uma “pedagogia do afeto”.

O Terreiro das Pretas é um aquilombamento autônomo no Cariri cearense, guiado pelos ensinamentos dos antepassados e pela esperança das futuras gerações. Há mais de 20 anos, é morada da família Neves Carvalho, remanescente do Quilombo Saco dos Cansanção, e atua como casa-escola de pedagogia relacional e cultural própria(Foto: Grunec)
Foto: Grunec O Terreiro das Pretas é um aquilombamento autônomo no Cariri cearense, guiado pelos ensinamentos dos antepassados e pela esperança das futuras gerações. Há mais de 20 anos, é morada da família Neves Carvalho, remanescente do Quilombo Saco dos Cansanção, e atua como casa-escola de pedagogia relacional e cultural própria

Para a cineasta e fotógrafa, registrar as falas das irmãs no filme é um ato político, um reconhecimento de que há sabedoria para além dos espaços hegemônicos. A concessão do título, para ela, apenas confirma o que os movimentos sociais já sabiam.

“Elas são doutoras da vida, da resistência, da invenção. A honraria é um gesto reparador e uma vitória coletiva que formaliza uma grandeza já existente”, define.

“Elas são vitoriosas e carregam uma ruma de gente juntas, porque aqui no Cariri a gente só anda de bando. Como elas dizem, nós andamos aquilombadas”.

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