Logo O POVO+
Na vanguarda do antirracismo
Foto de Rubens Rodrigues
clique para exibir bio do colunista

Rubens Rodrigues é jornalista, editor de Cidades do O POVO. Nesta coluna, trata de assuntos ligados a raça, diversidade e direitos humanos

Na vanguarda do antirracismo

Convidada para a edição deste ano do IVLP, Izabel Accioly fala sobre como Brasil e Estados Unidos estão na vanguarda do antirracismo
Imagem de apoio ilustrativo. Stone of Hope, estátua de Martin Luther King esculpida pelo escultor Lei Yixin, é uma das atrações do parque estadunidense Martin Luther King, Jr. Memorial. A peça foi inspirada no discurso do ativista que diz: "Uma montanha de desespero, uma pedra de esperança" (Foto: NPS Photo)
Foto: NPS Photo Imagem de apoio ilustrativo. Stone of Hope, estátua de Martin Luther King esculpida pelo escultor Lei Yixin, é uma das atrações do parque estadunidense Martin Luther King, Jr. Memorial. A peça foi inspirada no discurso do ativista que diz: "Uma montanha de desespero, uma pedra de esperança"

Este é um conteúdo extra da entrevista com a antropóloga Izabel Accioly publicada em 29 de setembro deste ano, estreia da coluna.

A antropóloga Izabel Accioly retorna a esta coluna para falar sobre sua experiência no International Visitor Leadership Program (IVLP), o programa de intercâmbio profissional financiado pelo Escritório de Assuntos Educacionais e Culturais do Departamento de Estado dos Estados Unidos – responsável pelas relações exteriores.

O programa reúne líderes de diversas partes do globo com experiência em campos distintos de atuação para cultivar uma rede de contatos e relações a partir de interesses profissionais com o suporte das políticas externas estadunidenses.

De acordo com a agência de Assuntos Educacionais e Culturais, a cada ano, cerca de cinco mil visitantes internacionais participam do IVLP. Mais de 200 mil pessoas já participaram do programa, incluindo mais de 500 (atuais ou ex) chefes de Estado.

Accioly esteve nos Estados Unidos em junho deste ano, durante 21 dias.

ESPECIAL | Educação antirracista: o eu, o outro e o nós

Intercâmbio profissional nos Estados Unidos 

OP - Você esteve nos Estados Unidos para um programa de intercâmbio profissional voltado para sociedade, cultura e sistema político. Como surgiu esse convite?

Izabel Accioly - Eu tenho que começar contando a minha própria história porque comecei a criar conteúdo para as redes sociais durante a pandemia e depois comecei a fazer cursos livres para quem quisesse compreender a questão racial. Uma das pessoas que se inscreveu foi a Júlia, que trabalha no consulado americano, no Rio de Janeiro. Ela começou a seguir meu trabalho, me acompanhar e me chamou pra fazer uma formação do consulado no Rio, para fazer um trabalho que é uma espécie de “tradução cultural”, das diferenças da questão racial nos Estados Unidos e no Brasil porque vêm muitos americanos trabalhar no consulado e que não compreendem como é a questão racial aqui. 

No ano seguinte, comecei a prestar serviço para outros consulados, como o de São Paulo e Brasília. E o IVLP, não é um programa de intercâmbio que as pessoas se inscreveram para participar. Elas são indicadas. A Júlia foi também a pessoa responsável por me indicar. Por conta da minha trajetória acadêmica, por conta do meu trabalho que ela tinha conhecido, tanto nas redes sociais, quanto ela me viu atuando no consulado e foi uma alegria imensa quando ela me indicou.

Quando recebi a notícia de que daria certo, fiquei incrédula. Fiquei surpresa e muito feliz, mas eu não tinha sequer passaporte. Fiquei muito honrada porque o IVLP é um programa muito prestigiado. Existe há mais de 83 anos. Pessoas importantes, chefes de estado, ganhador de prêmio Nobel, já passaram por lá.

Manifestações do racismo

OP - Você passou 21 dias lá. O que você destaca dessa experiência?

Izabel Accioly - Foi interessante porque começamos em Washington, DC. Tivemos primeiro uma formação sobre como acontece o federalismo, para entender um pouco o sistema político dos Estados Unidos. Ajudou a gente a entender todo o contexto que viria.

A escolha das cidades não foi óbvia. A gente realmente fez um intercâmbio para conhecer os Estados Unidos, a gente foi em Kalamazoo, no interior de Michigan, passamos por várias cidades que de certa forma foram uma espécie de vitrine do que é o país. Passamos por Atlanta, que é uma cidade muito negra, na Geórgia, e que tem suas incoerências também. Você vê pessoas negras muito bem de vida, aparentemente muito saudáveis, e também vê pessoas em situação de rua, em situações de vulnerabilidade gigantesca. Então, isso foi muito marcante.

Também estivemos em cidades muito, muito brancas. Aqui no Brasil, nós pessoas negras somos maioria. Em certos momentos, foi chocante chegar e só ver pessoas brancas que às vezes não tinham pudor em demonstrar que não queriam nossa presença ali em alguns momentos.

 

Izabel Accioly participa do Internacional Visitors Leadership Program, nos EUA(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Izabel Accioly participa do Internacional Visitors Leadership Program, nos EUA

OP - Em que momentos você percebeu esse tipo de comportamento?

Izabel Accioly - Tem uma coisa que acontece que acho que só pessoas negras conseguem entender, que é quando a gente chega num espaço e todo mundo vira para olhar pra gente, e aqueles olhares pesam. Uma pessoa branca que vai ler isso, entrar em contato com este relato, vai dizer assim: “Que besteira. É só um olhar”. Mas a gente sabe que esse olhar carrega um peso, e é um peso de: “O que essa pessoa está fazendo aqui? Que cabelo estranho…”

Houve também revistas nos aeroportos que “aleatoriamente” sempre escolhiam alguém do grupo que era completamente negro. Então, revistaram meu cabelo diversas vezes, revistaram o cabelo de outras amigas. E ironicamente nunca revistavam os cabelos das pessoas brancas que estavam com a gente.

É óbvio que quando a gente vai para outro país, principalmente um país que também é marcado pela desigualdade racial e pela supremacia branca, a gente espera que coisas como essas aconteçam. Mesmo que estejamos a convite do estado, mesmo que a gente esteja ali com todo o suporte que o consulado americano nos deu, ainda assim eles não têm como fazer o racismo estrutural parar para a gente poder passar.

Eu entendo que eles tiveram o máximo de cuidado possível para nos dar uma boa experiência, mas existem coisas que estão além do que eles podem controlar. E o racismo estrutural está além do que eles podem controlar. As revistas nos aeroportos estão além disso, os olhares das pessoas brancas quando a gente passava estão além disso. Acabamos vivendo algumas situações que não foram violentas, nem supervexatórias, mas que a gente consegue identificar nas sutilezas.

Brasil e Estados Unidos na vanguarda do antirracismo

OP - Você visitou lugares históricos para o povo preto nos Estados Unidos. Que paralelo é possível traçar da perspectiva deles de lidar com a própria história para o nosso modo?

Izabel Accioly - Mesmo a história da escravização do povo negro muitas vezes é protagonizada por pessoas brancas. Isso me chamou atenção. Por exemplo, nós visitamos a Underground Railroad, uma espécie de rota de fuga secreta No livro "The Underground Railroad: Os caminhos para a Liberdade" (HarperCollins Brasil, 2017), de Colson Whitehead, os caminhos e esconderijos secretos viraram uma ferrovia subterrânea. que pessoas escravizadas utilizavam para fugir de estados onde a escravidão ainda existia para onde a escravidão não existia mais. Visitamos a casa de uma família branca que era chefiada por um homem chamado Thomas. Um homem branco, médico, que abrigava, era um ponto de apoio nessa rota. Então, se alguém fugia e se machucava, podia passar nessa casa porque seria cuidado, acolhido, escondido, protegido durante um tempo até se recuperar e continuar a fuga.

Eu lembro que a gente fazia as visitas e depois sempre discutia o que tinha visto e eu perguntei para uma das pessoas dessa casa se ela tinha algum relato dessa mesma história sendo contada por uma pessoa negra. Ela falou que teve uma vez que recebeu uma visita de uma família negra, que provavelmente o bisavô dela passou por lá fugindo de outro estado, mas a gente não tem certeza. Vários intelectuais brancos durante muito tempo foram quem tiveram o direito de narrar a nossa história. Isso me marcou de ponto negativo.

Agora, como um ponto positivo, eu consigo perceber que Brasil e Estados Unidos são dois países que estão na vanguarda do antirracismo. Você pode pensar assim: “Caramba, mas o Brasil tá tão ruim, os Estados Unidos também, e eles são a vanguarda do antirracismo?” Sim. Porque do mesmo jeito que há essa grande pressão contra o povo negro, nós estamos sempre nos organizando de modo criativo e inovador pra combater essas coisas que nos afetam. Mesmo que nós estejamos sendo muito, muito reprimidos nesses dois países, também estamos fazendo o máximo possível pra ser essa força no sentido oposto. E eu vi exemplos incríveis.

No estado da Georgia, o porte de arma é liberado. Havia uma ONG a favor do desarmamento, que entendia que o alto índice de armas tinha relação com o alto número de homicídios. E esses homicídios não eram de pessoas brancas. Eles tinham essa atuação, mas pessoas que portavam armas não iam até a associação, eles tinham que fazer um trabalho fora. E onde são esses lugares? Quem são essas pessoas? Onde vamos conversar com elas? Aí, eles começaram a visitar as barbearias dos bairros e a encontrar com esses homens que estavam lá reunidos para fazer a barba e estavam abertos para uma conversa naquele ambiente mais descontraído, e tinham essas conversas sobre desarmamento. Vimos estratégias bem interessantes, que em certos momentos se assemelhavam com o que a gente faz aqui. Sobre informação, sobre carreiras acadêmicas, sobre memórias e história nos museus.

Obra de arte "The Underground Railroad", de Charles T. Webber, 1893. Pintura faz parte do acervo do Cincinnati Art Museum(Foto: Wikimedia Commons)
Foto: Wikimedia Commons Obra de arte "The Underground Railroad", de Charles T. Webber, 1893. Pintura faz parte do acervo do Cincinnati Art Museum

OP - Qual dessas visitas aos museus mais te marcou?

Izabel Accioly - Visitamos o Museu da Comunidade Anacostia, mantido pela Smithsonian Institution, em Washington, DC, no primeiro dia nos Estados Unidos, que foi incrível. Eles estavam comemorando o Juneteenth Abreviação de “june nineteenth” (19 de junho), feriado sancionado em junho de 2021, celebrado pela primeira vez neste ano, comemora o fim da escravidão. É também conhecido como o dia da independência negra. , e tava tendo uma grande festa, foi muito bonito. Vimos como essa comunidade negra se organizou de um jeito muito bonito. Esse museu comunitário colocava as pessoas expondo a história da comunidade. Lá, havia a exposição e no meio já havia espaço para as pessoas pensarem e elaborarem. Foi um dia que a gente viu como eles conseguem criar estratégias para engajar a comunidade na própria história.

Cumplicidade negra

OP - E o que você destaca de mais diferente nessas duas formas de ver a própria história?

Izabel Accioly - O que eu senti de diferença, e é certamente um costume que eu quero trazer pra cá, foi o fato de, constantemente, quando a gente passa pelas pessoas negras, elas se cumprimentam, elas se elogiam. Você é validado constantemente, e as pessoas sabem que aquilo levanta o seu astral. Você vê essa espécie de cumplicidade negra, validação negra de uma forma muito comum e cotidiana. Sinto que aqui, talvez por falta de uma consciência negra mais fortalecida, nós, pessoas negras aqui no Brasil, não fazemos tanto. Sinto, às vezes, que não tem espaço, tem espaço para o acirramento.

OP - É como se faltasse uma rede de apoio entre as pessoas negras.

Izabel Accioly - É. E é uma cumplicidade. Mesmo que não seja um elogio, há um aceno, um sorriso. Sei que em alguns lugares do País isso acontece, mas aqui em Fortaleza não vejo tanto. Quero ajudar a trazer esse costume. O que esse costume diz é: “Eu te vejo. E eu te vejo não porque tô com medo de você. Eu te vejo porque te achei bonito, te achei diferente, vi que algo bom de você existe e isso me chamou atenção”. 

 

Foto do Rubens Rodrigues

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?