
Jornalista, Professora, Empreendedora social, Mestre em Educação (UFC). Nesta coluna Cidade Educadora, escreve sobre os potenciais educativos das cidades, dentro e fora das escolas
Jornalista, Professora, Empreendedora social, Mestre em Educação (UFC). Nesta coluna Cidade Educadora, escreve sobre os potenciais educativos das cidades, dentro e fora das escolas
Quando eu comecei na educação, há mais de 25 anos, eu me lembro de que eu fugia das turmas de crianças. Quando comecei a atuar no jornalismo, entrevistar crianças foi o meu primeiro grande desafio que testou toda a minha teoria acadêmica e me levou a incontáveis horas de pesquisas e leituras extras, tentando entender como eu deveria me comportar diante delas, perguntar e ouvir com respeito, escrever para ser compreendida por elas.
Quando eu soube que estava grávida do meu primeiro filho, chorei um dia inteiro, quase em desespero. Quando meus filhos ainda frequentavam berçários, séries de educação infantil ou colônias de férias, meu primeiro ponto de máxima atenção, durante investigações de escolha, era sempre saber sobre os professores, se eram formados em pedagogia, se outros pais referenciavam suas atuações.
Infância, para mim, sempre foi assunto sério. Educar, escrever para elas, ter filhos, escolher educadores parceiros foram desafios que me encontraram, quase sempre, em pânico porque eu já sabia o tamanho da responsabilidade que é moldar um ser humano. Talvez, porque minha referência de infância respeitada e bem cuidada vem da mulher mais legal, amorosa e dedicada aos filhos que eu conheci, que alfabetizava crianças carentes do bairro, na sala de casa, enquanto educava os próprios filhos: minha mãe.
É sobre também honrar a memória dela. Mesmo com medo, diante de cada desafio com as infâncias com que fui presenteada, enfrentei disposta a compreender o que, de fato, vale a pena, na minha relação com elas e delas com o mundo e a entregar o melhor de mim para tornar isso possível.
A criança é prioridade absoluta na Constituição brasileira desde 1988 e possui um dispositivo legal de garantia e de proteção de direitos desde 1990, mas, ainda assim, segue refém do nosso desleixo de não a tornar o elemento fundamental para (re)estruturar sistemas e processos sociais de bem-estar. Para o pediatra e ativista pela infância, Daniel Becker, a primeira infância é a fase mais importante da vida.
Segundo o médico, entre 0 e 2 anos e, depois, entre 2 e 6 anos, a velocidade de crescimento do cérebro é espantosa: as sinapses se multiplicam em uma razão de conexões de 1 milhão por segundo. “Tudo o que acontece na primeira infância, de bom e de ruim, vai ter um impacto gigantesco na vida de uma criança”, destaca Daniel.
Encontrei o médico Daniel Becker durante o Encontro Nacional Urban95, que ocorreu aqui em Fortaleza, no comecinho deste mês de agosto. Daniel proferiu a palestra magna de abertura do evento, no Teatro José de Alencar. Antes disso, doou alguns minutos para uma conversa acolhedora sobre infâncias, maternidades, famílias, desafios das telas, educação midiática, importância do brincar e relações entre crianças, cidades e natureza.
Durante o bate-papo, Daniel enfatizou o papel das famílias e do quanto cuidar das crianças é, primeiro, cuidar e orientar os cuidadores delas. “A mãe precisa ser cuidada para conseguir cuidar, para amamentar; os pais precisam de mais tempo com suas crianças para criar vínculos. Vivemos em uma sociedade ainda contraditória no que se refere a uma infância que é priorizada em um mundo que ainda não sabe lidar com as necessidades dos seus cuidadores.
É preciso que as famílias possam ter tempo para estar e conversar com seus filhos; que as escolas cuidem das suas crianças com toda a diversidade atual; que o mercado de trabalho respeite as mães, dê licença paternidade decente para a colaboração com a mãe, para o estabelecimento de vínculo com a criança, para a responsabilização do pai no cuidado com ela; que surjam mais e mais políticas públicas importantes, como a da necessária regulação das redes”, enumera o pediatra.
A Fundação Maria Cecília Souto Vidigal lançou no dia 4 de agosto a pesquisa “Panorama da Primeira Infância: O que o Brasil sabe, vive e pensa sobre os primeiros seis anos de vida”, realizada em parceria com o Datafolha. A pesquisa traz dados inéditos acerca da percepção sobre a primeira infância.
Dos resultados alarmantes está o fato de que mais da metade da população brasileira (84%) não considera os anos iniciais como fundamentais para o desenvolvimento humano. De acordo com a pesquisa, 41% dos entrevistados acreditam que o maior pico do desenvolvimento físico, emocional e de aprendizagem ocorre na idade adulta, a partir dos 18 anos.
Apenas 15% citaram a primeira infância. Aliás, o estudo mostrou que, na verdade, 42% dos brasileiros desconhecem ou não sabem o que significa o termo “primeira infância”. O levantamento ouviu 2.206 pessoas em todo o Brasil, sendo 822 responsáveis diretos por crianças de até seis anos. O desconhecimento é maior entre pessoas do interior, com menor renda e escolaridade.
No que se refere às principais práticas para o desenvolvimento infantil, respeito aos mais velhos aparece como o item mais importante (96%), à frente de frequentar creche e pré-escola (81%) e deixar a criança livre para brincar (63%). O Panorama também procurou entender quais as estratégias disciplinares utilizadas pelos cuidadores.
Conversar com a criança e explicar o erro é o meio mais relatado (96%), seguido por acalmar e retirá-la da situação (93%). No entanto, 29% dos entrevistados admitiram o uso de práticas violentas, como palmadas e beliscões, inclusive com crianças de até 3 anos. 58% dos entrevistados também disseram colocar a criança de castigo e 43% relatam gritar ou brigar como forma de disciplina. Apesar disso, apenas 10% acreditam que os gritos funcionem como métodos disciplinares.
Sobre tais resultados, o pediatra Daniel Becker reforçou a necessidade de as famílias precisarem receber o apoio de toda a sociedade para dar conta de educar as crianças.
“A verdade é que sem uma infância bem vivida, cuidada, em que as crianças brinquem muito e experimentem o mundo com suas famílias, com seus pares, é bem pouco provável que se tenha uma vida adulta emocionalmente feliz. Infelizmente, é necessário ensinar o básico para a sociedade e para os pais, como, por exemplo, que não se educa com violência, mas com empatia e diálogo, e que o brincar livre, na natureza, é parte fundamental do desenvolvimento saudável delas”, justifica Daniel.
As telas são, talvez, hoje, o maior desafio da infância e das famílias na atualidade, de acordo com o pediatra Daniel Becker. O médico explica que, se pensarmos em termos de impacto no desenvolvimento, o adulto já tem o cérebro dele formado, a criança, não. Por isso, desde muito cedo e durante a adolescência, é preciso priorizar viver o mundo real, sob o risco de esfacelamento de toda evolução que trouxe o ser humano até aqui.
“Até os 14, 15 anos, o adolescente precisa, para se formar, se desenvolver de forma adequada, das experiências do mundo real. Para saúde dele, ele precisa da interação com o mundo, com os pais, com os pares. Sem as experiências do mundo, a criança e o adolescente não vão se desenvolver de forma adequada. Há crianças que passam oito horas diante de telas, o que é absurdo! Você está afastando ela de todos os fatores que fizeram com que a espécie humana se desenvolvesse, que é a interação social, o convívio com a natureza, com a luz do dia, o raciocínio, a criatividade, a imaginação, a interação com seus pares, o brincar, o contato com a natureza, o corpo em movimento. E com os adolescentes, a mesma coisa: eles precisam brigar, se reconciliar, se abraçar, chorar, namorar, tomar uma bronca do professor, se frustrar, se esforçar para melhorar. Todas são experiências fundamentais para o amadurecimento desse cérebro adolescente que está se preparando para ser adulto”, defende Becker.
Para o médico, um segundo grande problema na relação das telas com as infâncias e as adolescências é deixar que eles mergulhem em um mundo completamente inadequado. “Um mundo fútil, estúpido, fragmentado; eles ficam perdidos com um cérebro completamente passivo. Ali [internet, redes sociais], é só prazer. O mundo real fica chato. Eles têm acesso a conteúdos misóginos, racistas, intolerantes. Crianças que ficam muito tempo na tela ficam desatentas, hiperativas, com dificuldade de aprender, com muitos danos cognitivos, como os vindos da ausência de sono, que é fundamental para a absorção e a fixação das experiências. Esse processo está sendo destruído. A autoestima das meninas está impactada: elas estão deprimidas, ansiosas, tirando a própria vida. Os meninos têm se tornado misóginos, racistas, violentos, com muitas ideologias da extrema-direita, que são as que dominam as redes. Sem falar, na suscetibilidade aos golpes por pedófilos, golpistas, ladrões. Crianças são vítimas preferenciais”, discorre o médico.
Um dos caminhos apontados por Daniel Becker a fim de prepararmos as novas gerações para lidar com a internet é pela educação midiática. Conforme explica, a lei que restringe o uso de celulares nas escolas foi um grande avanço.
Segundo o pediatra, principalmente em relação aos adolescentes, não ter acesso aos celulares nas escolas significa um respiro na relação com as telas. “Voltou um pouco mais a interação com o mundo real dentro e fora da escola. Isso é fundamental. Devemos retirar o celular sim deles, mas a educação midiática deve andar em paralelo com essa retirada, é necessário olhar para as telas com fins didáticos”, recomenda o ativista Becker.
No contexto de sua palestra durante o Encontro Nacional da Urban 95, Becker falou ainda sobre o quanto uma cidade precisa ser acolhedora para as famílias, com muitas oportunidades de brincadeiras, como um convite para ir pras ruas; que as cidades possuam muita sombra, praças e parques com atividades nesses locais.
Daniel Becker reitera que a reestruturação das cidades com vistas ao aproveitamento dela por crianças e cuidadores melhora todos os indicadores de saúde e de bem-estar, além de adaptar as cidades à realidade climática que estamos vivendo.
- Pesquisa da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
- Guia "Crianças, Adolescentes e Telas: Guia sobre Uso de Dispositivos Digitais" (Governo Federal)
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