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Você pagaria R$ 150 mil para escolher o filho perfeito?
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Vladimir Nunan é CEO da Eduvem, uma startup premiada com mais de 20 reconhecimentos nacionais e internacionais. Fora do mundo corporativo, é um apaixonado por esportes e desafios, dedicando-se ao triatlo e à busca contínua pela superação. Nesta coluna, escreve sobre tecnologia e suas diversidades

Vladimir Nunan tecnologia

Você pagaria R$ 150 mil para escolher o filho perfeito?

A pergunta que parecia absurda até pouco tempo atrás agora é direta e desconfortável
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Imagem ilustrativa de apoio de um ultrassom médico (Foto: Pexels/MART PRODUCTION)
Foto: Pexels/MART PRODUCTION Imagem ilustrativa de apoio de um ultrassom médico

Durante décadas, filmes e livros imaginaram um futuro em que pais poderiam escolher como seus filhos nasceriam. Inteligentes, saudáveis, bonitos, longevos. O que parecia um enredo distante de ficção científica agora começa a ganhar forma no mundo real. Não em laboratórios secretos, mas em startups, investidores e anúncios no metrô de Nova York.

A pergunta que parecia absurda até pouco tempo atrás agora é direta e desconfortável: você pagaria cerca de R$ 150 mil para escolher características genéticas do seu filho?

Essa não é uma provocação teórica. Empresas como a Nucleus, startup de biotecnologia sediada nos Estados Unidos, estão oferecendo serviços de seleção genética de embriões com base em inteligência artificial e análise de DNA.

O discurso oficial é nobre: reduzir riscos de doenças hereditárias graves, aumentar a qualidade de vida futura e ajudar famílias com histórico médico delicado. Mas, por trás dessa promessa, surge um debate profundo sobre desigualdade, ética, poder econômico e o futuro da própria humanidade.

Do exame pré-natal à curadoria genética

A medicina já utiliza exames genéticos há décadas. Testes pré-natais para detectar síndromes, mutações ou riscos de doenças fazem parte da rotina de muitos hospitais. A diferença agora é o salto tecnológico.

Não se trata mais apenas de identificar um problema. Trata-se de comparar embriões, cruzar milhares de dados genéticos e escolher aquele que apresenta as “melhores probabilidades” de saúde, inteligência, aparência e longevidade.

Combinando biotecnologia, inteligência artificial e bancos massivos de dados genéticos, empresas conseguem estimar riscos futuros de doenças como câncer, diabetes, Alzheimer, problemas cardíacos e até transtornos psiquiátricos. Algumas prometem também indicadores relacionados a desempenho cognitivo, metabolismo e expectativa de vida.

Em termos técnicos, o processo é conhecido como seleção poligênica. Ele não garante resultados absolutos, mas trabalha com probabilidades estatísticas. Ainda assim, para muitos pais, a promessa de reduzir riscos já é suficiente para justificar o investimento.

A Nucleus e a normalização do “upgrade genético”

A Nucleus ganhou atenção internacional ao lançar anúncios no metrô de Nova York promovendo seus serviços.

Não eram campanhas discretas. Eram diretas, provocativas e estrategicamente posicionadas em uma cidade que concentra capital financeiro, investidores de risco e uma elite acostumada a pagar caro por vantagens competitivas.

O modelo de negócio é claro. Pais fornecem material genético, a empresa analisa múltiplos embriões gerados por fertilização in vitro e apresenta relatórios detalhados sobre cada um. A decisão final é dos pais, mas o filtro é tecnológico.

Investidores de peso do Vale do Silício já demonstraram interesse nesse mercado. Para eles, trata-se de uma interseção perfeita entre biotech, IA e dados, três setores que já atraem bilhões de dólares em investimentos globais.

 

Ajuda médica real ou nova forma de eugenia?

É impossível discutir esse tema sem tocar em um conceito histórico sensível: a eugenia. No passado, ideias de “melhoramento genético” foram usadas para justificar políticas racistas, excludentes e violentas. Hoje, o discurso mudou. Ele vem embalado em linguagem científica, tecnológica e individualista.

Defensores da seleção genética argumentam que não se trata de criar “super-humanos”, mas de evitar sofrimento. Famílias com histórico de doenças graves veem na tecnologia uma chance real de quebrar ciclos hereditários de dor. Nesse contexto, a ferramenta pode ser vista como um avanço humanitário.

O problema surge quando o critério deixa de ser apenas saúde e passa a incluir atributos desejáveis. Inteligência mais alta. Aparência considerada ideal. Maior resistência física. Menor propensão à obesidade. Maior longevidade. Quando essas escolhas se tornam possíveis, surge uma linha tênue entre cuidado e controle.

Quem poderá pagar para nascer com vantagem?

O valor cobrado por esse tipo de serviço não é acessível. Estamos falando de cifras que ultrapassam facilmente R$ 100 mil, considerando exames, fertilização in vitro, análises genéticas e taxas das empresas. Isso coloca a tecnologia fora do alcance da maioria da população mundial.

O risco evidente é a criação de uma nova desigualdade, agora biológica. Uma elite que pode pagar para reduzir riscos, melhorar probabilidades e “otimizar” seus filhos, enquanto o restante da população continua sujeito ao acaso genético.

Pesquisadores em bioética alertam para um futuro em que diferenças sociais não serão apenas econômicas ou educacionais, mas também genéticas. Uma sociedade onde oportunidades começam antes mesmo do nascimento.

A ilusão do controle total sobre a vida

Outro ponto crítico é a falsa sensação de controle. A genética influencia muito, mas não determina tudo. Ambiente, educação, experiências, alimentação, relações sociais e fatores imprevisíveis continuam moldando quem somos.

A promessa de escolher o “melhor embrião” pode criar expectativas irreais. Pais podem projetar sobre os filhos uma carga psicológica enorme, esperando que eles correspondam às probabilidades pagas. E quando a vida não seguir o roteiro estatístico, o conflito emocional será inevitável.

Além disso, muitos cientistas alertam que traços como inteligência e comportamento são altamente complexos e dependem de centenas ou milhares de genes, além de fatores externos. Reduzir um ser humano a um relatório probabilístico é, no mínimo, perigoso.

A ética ainda corre atrás da tecnologia

A legislação não acompanha a velocidade da inovação. Em muitos países, as regras sobre seleção genética são vagas, desatualizadas ou inexistentes. Isso abre espaço para que empresas avancem em zonas cinzentas da ética, guiadas mais pelo mercado do que por consensos científicos ou sociais.

Comissões de bioética ao redor do mundo discutem limites, mas o ritmo é lento. Enquanto isso, startups seguem captando investimentos, refinando algoritmos e ampliando ofertas. O mercado não espera o debate amadurecer.

E quando uma tecnologia se normaliza antes de ser amplamente discutida, o retorno se torna quase impossível.

O papel da inteligência artificial nesse novo cenário

A IA é o motor dessa transformação. Ela cruza dados genéticos com milhões de registros médicos, históricos populacionais e estudos científicos.

Quanto mais dados, mais refinadas se tornam as previsões. Isso cria um ciclo de retroalimentação. Quanto mais pessoas usam o serviço, mais dados a IA coleta. Quanto mais dados, mais precisa ela se torna. E quanto mais precisa, mais desejável se torna para quem pode pagar.

Estamos diante de um modelo clássico de tecnologia exponencial, agora aplicado à própria biologia humana.

Novas teses de investimento e o apetite do mercado

Do ponto de vista financeiro, esse setor é extremamente atraente. Biotecnologia, IA e saúde já concentram grande parte dos investimentos globais em inovação. A seleção genética adiciona um componente emocional poderoso: filhos, família, futuro.

Fundos de venture capital veem esse mercado como inevitável. A lógica é simples: se a tecnologia existe e há demanda, ela vai crescer. A discussão ética, nesse raciocínio, vira um detalhe a ser resolvido depois.

Isso explica por que empresas como a Nucleus não apenas existem, mas crescem, atraem capital e se posicionam publicamente com campanhas agressivas.

Estamos preparados para decidir quem merece nascer “melhor”?

Essa talvez seja a pergunta mais incômoda de todas. Ao permitir que escolhas genéticas sejam guiadas por poder econômico, corremos o risco de redefinir conceitos básicos de valor humano.

Quem nasce sem “otimização” será visto como menos preparado? Menos competitivo? Menos desejável? A história mostra que sociedades que hierarquizam vidas com base em critérios biológicos caminham por terrenos perigosos.

O discurso atual fala em liberdade de escolha. Mas liberdade sem igualdade de acesso nunca é realmente liberdade.

Entre o avanço e o abismo

Não se trata de demonizar a ciência. A genética já salvou e continuará salvando milhões de vidas. A possibilidade de reduzir doenças graves é um avanço inegável. O problema surge quando o mercado empurra a tecnologia além do cuidado e entra no território do aprimoramento seletivo.

Gostemos ou não, esse futuro já começou. Ele não será interrompido por indignação moral isolada. Mas pode e deve ser debatido, regulado e questionado enquanto ainda há tempo.

Conclusão: o futuro está sendo decidido agora

A pergunta não é mais se a tecnologia vai avançar. Ela já avançou. A pergunta é quem vai decidir seus limites. Se deixarmos apenas investidores, startups e interesses de mercado conduzirem esse processo, corremos o risco de construir um futuro profundamente desigual desde o nascimento.

Pagar R$ 150 mil para “escolher” um filho pode parecer uma decisão individual. Mas suas consequências são coletivas. E vão moldar a sociedade em que todos nós viveremos.

Gostemos ou não, a genética, a inteligência artificial e a biotecnologia já estão redesenhando o futuro humano. O que ainda está em aberto é se faremos isso com consciência, ética e responsabilidade, ou se acordaremos tarde demais para um mundo onde nascer já é um privilégio financeiro.

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