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"Nunca tive medo de enfrentar a Covid-19, mas é angustiante"
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"Nunca tive medo de enfrentar a Covid-19, mas é angustiante"

O médico intensivista, que desde março trabalha na linha de frente do combate à Covid-19, conta como foi virar paciente e ter que ficar sem comunicação e com a autonomia limitada
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Foto do médico doutor Weiber Xavier. (Divulgaçao) DOM 26.04 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Foto do médico doutor Weiber Xavier. (Divulgaçao) DOM 26.04

Médico intensivista há mais de 30 anos, Weiber Xavier atua no enfrentamento à Covid-19 em Fortaleza desde março. No último mês, passou de médico a paciente e ficou 18 dias internado. Há uma semana está em casa se recuperando com fisioterapia e apoio nutricional, afinal perdeu 11kg no período de internação. Em conversa com O POVO, ele conta o que passou, lembra do apoio que recebeu e avalia aspectos da pandemia no Ceará.

O POVO - Recentemente o senhor contraiu a Covid-19 e precisou se internar. Como foi se ver paciente após sete meses atendendo tantas pessoas que tiveram a doença?

Weiber Xavier - Eu não imaginava que, tratando pacientes com Covid-19 direto nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) e em casa, sempre com todos as medidas de proteção, pudesse me contaminar. Muito menos da forma como evoluiu. A doença progrediu e eu fiquei com insuficiência respiratória. Foi um pesadelo que ninguém imagina. Recebendo oxigênio com diversos aparelhos para evitar ser entubado e sem a possibilidade de estar em contato com as pessoas, com dificuldades de comunicar e com a autonomia limitada.

Felizmente, recebi uma assistência muito generosa de todos da equipe e consegui superar esse estresse. Mas você fica sem dormir, sem conseguir se alimentar, é difícil confrontar seu próprio sofrimento e finitude. Nunca tive medo de enfrentar a Covid-19, mas é angustiante. Sendo médico e tendo visto todas as complicações possíveis da doença é ainda mais complicado. Essa é a maior angústia do conhecimento.

OP - Qual foi o suporte mais importante nesse momento?

Weiber - Infelizmente, nos dez dias de UTI não tive acesso a qualquer tipo de comunicação externa. Nessa hora é mesmo a presença física dos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas; sem eles você fica completamente isolado. Isso é o pior dessa doença, ficar só e não ter notícias. Depois, quando tive acesso ao celular, recebi muitas mensagens, telefonemas, cartões, a presença de amigos e família pelo vidro. Uma corrente de pessoas, que às vezes você nem conhece, que são muito solidárias.

OP - O que essa experiência mudou no Weiber, pessoalmente e enquanto profissional?

Weiber - Sou médico há mais de 30 anos e sempre tive o cuidado com meus pacientes, mas, quando a gente está do outro lado, o sofrimento nos torna mais humanos, mais sensíveis ao outro. A gente precisa sair melhor dessa pandemia; a solidariedade e a gratidão por cada pequena coisa é algo que fica para mim. A família, os amigos, os valores, o tempo para cuidar de si mesmo ganham ainda mais valor.

Ao mesmo tempo, tenho me questionado sobre muita coisa. Você se pergunta sobre o seu papel, sobre o que você pode melhorar, sobre quais ensinamentos é possível receber. Profissionalmente, toda essa situação, acredito que me leva para uma medicina com ciência, claro, mas também com humanidade e paixão. Dar conforto, estar presente e disponível, despertar o melhor de cada um.

OP - Durante sua internação, foi utilizado o Elmo, um capacete de respiração assistida. Sendo médico e paciente, quais as vantagens que percebeu na prática pelo uso desse novo equipamento?

Weiber - O elmo chegou até mim por meio do Marcelo Alcantara, amigo que esteve no desenvolvimento desse equipamento, e ficava cerca de quatro horas com ele por cada turno do dia. Apesar de se parecer com um escafandro e até passar uma impressão de claustrofobia, é um alívio genial diante da falta de ar da doença. É muito confortável e diminui as chances de você ir para o tubo dando esse suporte enquanto o pulmão desinflama. Tive um comprometimento de mais de 80% do pulmão; se não tivesse sido essa estratégia, viriam complicações graves.

OP - Diante disso, de que forma acredita que essa nova tecnologia pode melhorar as perspectivas de pacientes com quadros de insuficiência respiratória?

Weiber - Acredito que é um dispositivo genial que precisa realmente ter todo o apoio para que outros pacientes possam ter acesso. Muitos não têm acesso ou sabem que existe. Quando vem na hora certa, em um momento precoce, é de grande eficácia. Sendo mais disponibilizado, é um equipamento de baixo custo e que funciona de maneira providencial. Eu chamo de "capacete salvador" e é uma ideia que acho que precisa ser mesmo incentivada e conhecida.

OP - Entre as tantas situações vividas na assistência a pacientes com a Covid-19, houve alguma mais marcante?

Weiber - As situações mais tristes são ver o sofrimento que vem com a falta de comunicação entre pacientes e familiares e, claro, perder o paciente que estava sob sua responsabilidade. Me lembrei muito desses momentos enquanto estive internado. Ao mesmo tempo, tem também a lembrança de todos que sobreviveram e os que são muito gratos ao tratamento. É essa dualidade entre o ruim e o bom, o sofrimento e o alívio, a dor e a alta.

OP - Qual a realidade que se vê hoje na UTIs? O que mudou nos protocolos, na atuação das equipes e no perfil dos pacientes?

Weiber - Eu estava atendendo até a última semana de outubro, antes de me internar. Eu vinha notando que estava em queda. Os pacientes graves de UTI tinham diminuído bastante, mas estava acontecendo um aumento nas consultas e com maior entrada de pacientes, ainda não tão graves a ponto de ir para a UTI. O pior período foi mesmo entre abril e maio quando a gente ainda não tinha muita noção sobre o tratamento. Hoje estão estabelecidas estratégias que têm funcionado e acho que estamos mais bem treinados, com o conhecido já de maior alcance. Mesmo a Covid-19 não seguindo um padrão, evolui diferente em cada pessoa, mas agora sabemos mais e conseguimos tratar melhor.

OP - Sendo também professor de Medicina, como o senhor percebe a formação de novos profissionais para a saúde pública?

Weiber - Ensino aos alunos do sétimo semestre para o atendimento inicial ao doente grave e a gente sempre procura estimular para que esses alunos tenham interesse na especialização nessa área, que realmente demanda muito. É uma especialização exigente, com doentes graves, com plantões, mas ao mesmo tempo é muito gratificante dar alta a essas pessoas, saber que elas estão voltando para casa. É isso que a gente tenta passar para os estudantes. Junto a isso, apesar de ser uma especialidade nova, que começou na década de 1950, temos no Brasil vários centros de excelência. No setor público, o Hospital das Clínicas e o Hospital Geral, como exemplos, e muitas UTIs boas nos hospitais privados. 

OP - Além da formação profissional, a saúde pública enfrenta questões importantes envolvendo a infraestrutura. Como o senhor avalia a capacidade da saúde pública do Ceará para atender as demandas geradas pela pandemia?

Weiber - É um desafio cuidar de pacientes graves no sistema público especialmente, mas também no setor privado. É tudo sobrecarregado. A falta de leitos, de insumos e de profissionais especializados já é registrada há muitos anos, mas acredito que a equipe da Secretaria da Saúde conseguiu herculeamente otimizar as estruturas, como o Hospital Leonardo Da Vinci, que puderam prover leitos e trazer uma situação melhor no Ceará que em outros estados. Foi e está sendo difícil, até porque existem outros doentes críticos, né? Doentes infartados, com acidente vascular cerebral, com sepse que precisam de leitos de UTI e normalmente não temos. Felizmente esse plano estratégico tem minimizado essas deficiências.

OP - O que ainda falta?

Weiber - A questão da saúde vai desde o saneamento até o leito de UTI. Se você não trata adequadamente o diabetes, a pressão alta, o colesterol isso inevitavelmente vai levar a situações graves. E você não pode criar vários leitos de UTI. Então a questão é muito delicada na assistência à saúde. Medidas preventivas precisam ser tomadas. Outro ponto é que precisamos de pessoas treinadas. Existem poucos especialistas em terapia intensiva, por exemplo; ficam migrando de um hospital para o outro, sobrecarregados, porque não existe uma política de incentivo a essa formação.

Elmo

Acomodado ao pescoço do paciente, o capacete de acrílico permite ofertar oxigênio a uma pressão definida. Como um mecanismo de respiração artificial não-invasivo, é aconselhado para quadros clínicos moderados e em início de gravidade. O dispositivo começou a ser desenvolvido em abril por um cooperação entre órgãos e universidades públicos e privados.

Covid-19 entre profissionais da saúde

No Ceará, 17.687 trabalhadores dos serviços de saúde foram infectados pelo coronavírus. Destes, 38 morreram em decorrência de complicações da doença. Os dados são da plataforma IntegraSUS e foram atualizados às 9h38min da última sexta-feira, 20.

 

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