A criação de impacto positivo na sociedade a partir da ampliação das perspectivas de pessoas carentes fazem parte da vida de Beatriz Fiúza há, pelo menos, dez anos. A filantropia foi a primeira atividade dela na tentativa de solucionar problemas sociais e, por isso, fundou o instituto que leva o nome de sua mãe, também Beatriz, e de seu pai, o empresário Lauro Fiúza.
O interesse a fez conhecer o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), do qual é conselheira, e, ano passado, assumiu a diretoria executiva da Somos Um. A organização que mira os negócios de impacto como forma de resolver os problemas da sociedade. O trabalho também a trouxe para a rádio O POVO CBN, com quadro sobre negócios de impacto.
Beatriz passou a trabalhar no estímulo nos dois opostos da pirâmide social: na base, para capacitar o empreendedor, e no topo, para envolver a iniciativa privada de grande porte. Mesmo reconhecendo os desafios de ampliar a visibilidade deste nicho de negócio, ela afirma sem demonstrar dúvida: "O Ceará tem uma grande oportunidade de sair na frente em relação aos negócios de impacto."
O POVO - Quando começou a se envolver com os negócios de impacto e por quê?
Beatriz Fiúza - Eu conheci os negócios de impacto vindo da filantropia. Venho atuando há mais de dez anos com filantropia. Comecei trabalhando em projetos culturais e sociais de assistência social também ligada a educação. Cheguei a fundar uma, aqui no Ceará, o Instituto Beatriz e Lauro Fiúza, que é uma organização familiar e que dirigi durante alguns anos e, depois, comecei a ter uma atuação mais olhando para a estratégia da filantropia. Isso me levou a conhecer o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), do qual eu sou conselheira. É um grupo nacional que atua há mais de 20 anos com filantropia no País.
Foi quando eu comecei a desenvolver uma visão mais estratégica em cima desse setor e a pensar como que a gente pode buscar soluções sistêmicas para esses complexos que o Brasil enfrenta por meio da filosofia, por meio do terceiro setor, por meio das organizações da sociedade civil. Estudando e pesquisando, encontrei essa outra forma de solucionar problemas sociais e ambientais que é pelos negócios, por meio da iniciativa privada. E são os negócios sociais e os negócios de impacto. Conheci a proposta do professor Muhammad Yunus (economista pioneiro em usar o termo, fundador do Grameen Bank e ganhador do prêmio Nobel da Paz em 2006), que escreveu um livro sobre negócios sociais introduzindo essa ideia de que os negócios podem também solucionar problemas complexos enquanto têm sustentabilidade financeira, geram um lucro e promovem um impacto positivo.
Isso foi algo muito natural para mim porque eu venho de uma família empreendedora e entender que é possível promover impacto positivo do terceiro setor com a sustentabilidade financeira e a busca de retorno financeiro que é da iniciativa privada pareceu muito oportuno e inteligente. E é o que a gente chama de setor dois e meio. Esse lugar que fica no meio entre segundo e terceiro setor. Em seguida, eu conheci, fazendo uma pesquisa de quais seriam os caminhos, a organização Somo Um, criada por uma amiga, que é a Ticiana Rolim em 2017 para fomentar esse ecossistema de negócios de impacto.
Ela me apresentou a ideia e, ao invés de empreender, eu acabei vindo para dentro da Somos Um, pois ela me chamou para assumir a direção executiva da organização, em agosto do ano passado. É o que eu estou fazendo hoje: estruturando com ela uma organização que consiga ajudar empreendedores, atores de diferentes áreas – investidores, gestores financeiros, consultores... – para atuar nesse ecossistema e poder crescer e desenvolver seus negócios de impacto.
OP - Que atividades desempenham para que os negócios de impacto sejam disseminados no Ceará?
Beatriz - Nós trabalhamos com três grandes frentes. Temos uma frente de formação, de educação, pelo qual observamos uma importância em produzir conteúdo. A participação no programa da rádio O POVO CBN é um desses projetos de conteúdo, inclusive. Mas também temos um podcast que se chama Pode Impactar, com conversas com empreendedores, gestores públicos de diferentes áreas que atuam para fortalecer esse ecossistema dos negócios de impacto. A gente ainda promove o webinários dentro de empresas, eventos, fazendo palestras e a formação propriamente dita, com cursos e workshops.
Isso atende desde a base da pirâmide social, pois temos cursos para empreendedores um programa de aceleração de novos negócios de impacto na periferia. São ações ligadas à educação para empreendedorismo de impacto.
Tem um segundo braço que é o de consultoria, pelo qual a gente vai para dentro das empresas trabalhar com as empresas fazer diagnóstico de que forma elas podem promover um impacto mais consistente, positivo. A gente acompanha a empresa nessa jornada de transição para o impacto positivo. E tem um terceiro braço que é de advocacy. A gente acredita que para esse setor crescer é preciso um ambiente de políticas públicas que favoreçamos negócios de impacto. Para isso, a gente atua apoiando a aprovação de leis nesse sentido e fortalecendo instituições, como o Sebrae e outras que possam de alguma uma forma fortalecer esse ecossistema.
OP - E as empresas buscam fazer parte deste ecossistema dos negócios de impacto, aqui no Estado? Qual o grau de interesse dos empresários locais?
Beatriz - É um assunto ainda pouco conhecido no Ceará e que se confunde muitas vezes com a filantropia. É difícil ter uma virada de chave assim, e isso precisa ser feito. Quando a gente fala em impacto positivo, em solucionar problemas sociais, é muito imediato se pensar em doação, filantropia e terceiro setor. A gente está dizendo “não, não é só isso.” Esse é caminho da filantropia é muito importante e a sociedade precisa se organizar por meio das organizações, defender algumas pautas e promover o nosso desenvolvimento dessa forma, mas existe um caminho dentro da iniciativa privada e a gente pode olhar para esses problemas. Existem modelos de negócios que podem incluir problemas social ou ambiental e toda tomada de decisão para desenvolver o negócio nisso. Mas é uma virada de chave ainda difícil, eu sinto.
A gente tem um trabalho de letramento muito forte pela frente. E por isso é importante esse braço de produção de conteúdo, de informação, seja para empreendedores ou para as lideranças empresariais. Precisamos que todo mundo entenda quais são as oportunidades que as empresas podem ter para promover impacto positivo, seja olhando para o próprio modelo de negócio das empresas seja apoiando empreendedores de determinado se conectam com a empresa. A gente está nessa fase de apresentar quais são as possibilidades.
OP - Ao fazer parte de uma família empreendedora, fica mais fácil de entrar no meio empresarial com esses objetivos?
Beatriz - Eu acredito que sim. Mas aí mora também um dilema porque a gente tem mais familiaridade com a lógica dos negócios e também uma proximidade, uma facilidade maior de conseguir conversar com as lideranças empresariais aqui no Estado. Por outro lado, a gente entende que é preciso envolver toda a sociedade de diferentes setores especiais, diferentes experiências e ter pessoas que vivem de fato esses problemas sociais que a gente está tentando combater. Porque senão fica uma fala hermética. É um desafio constante a gente não cair na armadilha de achar que tem todas as soluções na mão porque a gente tem alguns problemas que nunca vai saber sem conhecer de fato, na pele.
Então, sim, existe uma ponte de promover esses contatos, de fazer essas articulações, porque é um lugar acesso nosso, mas isso também uma responsabilidade muito grande de trazer para o holofote quem está trabalhando na ponta, quem está promovendo soluções e quem está lá atuando na periferia e na nas áreas que necessitam.
OP - Quais os nichos de negócios de impacto social enxerga, hoje, mais proeminentes aqui no Ceará? E por quê?
Beatriz - Temos alguns problemas muito evidentes. Um deles é grave, que é de habitação no Estado. Na verdade, um problema mundial. Nesse período de pandemia muita gente perdeu renda, casa e teve que ir para rua. Ninguém deveria ter que passar por isso. É uma situação de extrema vulnerabilidade que traz uma série de outros problemas. E existem negócios, hoje, pensando em soluções para as pessoas com moradia precária. Há o nicho de reformas populares, por exemplo, que tem o Bom Viver. Foi um negócio foi acelerado dentro da Somos Um, criado em um hackathon e está rodando, faturando, tem dezenas de reformas concluídas e tem como público-alvo comércios na periferia. São reformas financiadas, com baixo custo, de fácil acesso para as pessoas de baixa renda. Isso promove uma mudança positiva na vida das pessoas. Então, existe empresas como essa, que estão crescendo e trabalhando nessa lógica no Brasil inteiro.
Existem ainda negócios pensando em como possibilitar que pessoas em situação de vulnerabilidade acessem casas, apartamentos, ou seja, uma habitação segura. Um exemplo é o Soma, uma empresa de São Paulo que foi criada por três organizações é que está desenvolvendo uma ideia de aluguel social no centro no centro de São Paulo. Nessa mesma perspectiva, tem um negócio nascendo aqui em Fortaleza, que é o Divercidade. Foi uma empresa incubada pela Somos UM também e está pensando como solucionar o problema desenvolvendo projeto de locação social no Centro de Fortaleza. Há projetos para solucionar problemas relacionados à promoção de trabalho digno, problemas ambientais. Ainda há um ambiente enorme.
OP - Como é tratada a sustentabilidade nos negócios de impacto? A vertente ambiental dentro do negócio de impacto social tem ganhado mais força? Como ela se manifesta?
Beatriz - Hoje, a gente vê muito mais negócios de impacto olhando para a questão social, aqui no Brasil. Mas existem negócios olhando para os problemas ambientais. Tem um negócio que eu acho bem interessante: a Positiva, de São Paulo. É uma empresa que nasceu para desenvolver produtos de limpeza e de uso pessoal sem químicos, sem poluir o meio ambiente e usando embalagens feitas de material reciclável ou biodegradável. Eles começaram a trabalhar uma nova lógica de fazer limpeza, com sabão para lavar roupa, sabonete, escova de dente e tudo pensado na lógica da economia circular, que não gera mais lixo para o planeta.
OP - Sobre as dificuldades, Beatriz, qual a principal dificuldade de disseminar negócios de impacto social no Ceará e no Brasil de uma forma geral? E como superá-los?
Beatriz - Existe uma dificuldade de fortalecimento do ecossistema mesmo, a gente precisa qualificar cada vez mais os profissionais que atuem nessa área. Os negócios de impacto no Brasil ainda tendem a ser pequenos. Existe a dificuldade de chegar ao fim da jornada empreendedora, passada a fase de tração. Então, é importante ter investimento para fortalecer os ecossistemas que possibilitem que os empreendedores vão além com os seus negócios. Esse investimento na estruturação de base do setor é a nossa maior dificuldade.
Existe uma outra dificuldade que é a de ter capital filantrópico para investir nos negócios que estão nascendo. A gente tem alguns atores, principalmente em São Paulo, como fundos de investimento especializados em negócios de impacto e empresas de mentoria já olhando para os negócios que estão em fase de tração e mais adiantadas. Esse pessoal recebe investimento simples, série A, então, já estão mais avançados.
Mas os que tem mais dificuldades são os que estão no começo da jornada, com situação de risco muito altas. Para estes empreendimentos é preciso ter capital filantrópico. Ou seja, gente disposta a doar para possibilitar o início da jornada. Este é um lugar que a gente precisa avançar para dar essa largada.
OP - E qual a participação enxerga para o governo nesse ecossistema?
Beatriz - É muito importante a criação de políticas públicas e de programas de aceleração de negócios em todos os setores, mesmo a gente não falando apenas dos negócios de impacto. Crédito barato, apoio na formação dos empreendedores, programas de retorno de imposto em determinadas áreas... Existem mecanismos que são essenciais para a gente pensar o desenvolvimento além da iniciativa privada.
O BNDES conta com programa de aceleração para negócios de impacto e alguns outros programas surgindo nesse sentido. Mas a gente precisa de mais. De mais gente disposta a se arriscar e de mais políticas que identifiquem o valor que tem o negócio que promove o impacto positivo.
Se formos olhar para a grande maioria das empresas, o lucro é o determinante do sucesso de uma empresa. Dificilmente se leva em consideração o impacto negativo que é gerado, para o ambiente e para o governo. Ou seja, quanto de imposto precisa ser investido para lidar com os danos promovidos pela iniciativa privada? É o setor que mais movimenta dinheiro no mundo e quem mais provoca impacto negativo no mundo. É um custo muito grande.
Isso precisa ser levado em consideração e são as políticas públicas, os governos que podem olhar com mais critério, incentivando aqueles que não estão promovendo esse impacto negativo e estão ajudando a solucionar os problemas que o próprio governo precisaria investir dinheiro para solucionar.
OP - Onde está o Ceará nesse cenário? De promoção, desenvolvimento e atuação da iniciativa privada e do Estado em relação aos negócios de impacto?
Beatriz - O Ceará tem uma grande oportunidade de sair na frente em relação aos negócios de impacto. A gente vê o Estado crescendo ano após ano, conectando-se com o mundo. A gente tem desenvolvido áreas importantes, como Educação, Energia... Temos pautas relevantes como a do hidrogênio verde e uma capacidade muito grande de sair na frente nisso. Acredito que em relação aos negócios de impacto não pode ser diferente.
Precisamos entender que é por meio do empreendedorismo que a gente pode solucionar muitos dos problemas gritantes que vivemos hoje, como pobreza, seca, mobilidade e muitas outras que podem ser abordadas pela ótica dos negócios. É necessário criar um ambiente favorável para que as ideias nasçam, desenvolvam e possam promover essas soluções. Isso seria um ganho enorme para o Estado.